30.5.07

Doce de tomate


Todos os anos, por altura da última quarta-feira de Agosto, é certo e sabido que a população e vizinhança da localidade espanhola de Buñol, na comunidade valenciana, perdem, literalmente, a cabeça e, a pretexto das festividades de San Luis Beltrán, vai de arremessar toneladas e toneladas de tomates, transformando a Plaza Mayor numa verdadeira tomatada.

Pois bem, parece que a blogosfera foi acometida de uma loucura semelhante… Anda tudo por ai a distribuir tomates a torto e a direito. Brincadeiras à parte, para quem ainda não sabe do que se trata, eu explico: “Blog com Tomates” é o mais recente prémio destinado a distinguir bloggers que assumem posições e defendem, senão com mérito, pelo menos com reconhecida tenacidade, os seus pontos de vista. Para os brasileiros, tomates serão apenas tomates, mas se eu acrescentar que para nós, portugueses, são sinónimo de virilidade (testículos), então acho que se torna claro o porquê de se dizer a propósito de alguém corajoso, ou de alguma coisa (neste caso um blogue), que os tem (a eles, os ditos) no lugar.





Entendeu o caro Maurice, que já me havia antes atribuído o “Thinking Blogger Award”, colocar-me entre os seus eleitos para esta nova categoria. É claro que sou sempre apanhado de surpresa ― logo eu, que me acho indeciso, às vezes até cobarde, na forma como conduzo a minha vida… Mas, enfim, também não vou fazer doce. As ideias que transmito aqui, boas ou más, são as minhas e por elas assino em baixo. Sem mais delongas: muito obrigado, Maurice.

Desta vez não me vou furtar a uma das obrigações dos distinguidos, que é a de eleger outros cinco que, a meu ver, também mereçam ostentar um belo par de tomates. Tenho sempre imensa dificuldade em escolher uns em detrimento de outros, mas como já me facilitaram a tarefa, e muitos dos blogues que eu acharia poderem igualmente enquadrar-se na categoria já foram apontados, os meus eleitos são:

Poison (Pela irreverência, pela escrita criativa, pelo humor inteligente… e porque me identifico)
Manuel Braga Serrano (Por mais que mude de blogue, nunca se perde a pertinência da sua escrita)
Moura ao Luar (É mulher e não precisa de tomates para falar de forma aberta, e sem falsos pudores, sobre sexo)
Edu (Porque não manda recado por ninguém)
Manuel (Em matéria de blogues confessionais, e assumidos, foi o primeiro dos portugueses que li e de que gostei)

Os tomates estão agora na vossa mão. Façam bom proveito!

27.5.07

O trapézio



A abrir
A música. Sempre ela. Inspirei-me em O Rapaz do Trapézio Voador, um álbum dos Rádio Macau, de 1989, para escrever este falso conto de embalar. Porque também eu já quis ser como o rapaz do trapézio voador.


Era uma vez um miúdo que não gostava de circo ― quando todas as outras crianças riam com os palhaços, ele, apavorado, chorava.
O miúdo não gostava de circo, mas queria ser como o rapaz do trapézio voador.
O miúdo, agora homem, tornou-se o rapaz da porta ao lado e não o rapaz do trapézio voador.
O rapaz da porta ao lado passou a invejar o rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador era tudo aquilo que ele, o rapaz da porta ao lado, queria ser mas não era.
O rapaz da porta ao lado invejava a liberdade e a audácia do rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador arriscava a vida todas as noites, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, se limitava a viver sem riscos.
O rapaz da porta ao lado invejava o rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador vivia na luz, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, se limitava a ficar quieto na sombra.
O rapaz da porta ao lado invejava o rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador conservava as suas asas e a ilusão intacta de tocar no céu, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, tinha trocado as suas asas pela ilusão de ser apenas um homem entre os homens.
Mas, um dia, o rapaz da porta ao lado descobriu que também podia ser o rapaz do trapézio voador.
Como um ilusionista que, à força de tanto repetir o truque, se convence da ilusão, também o rapaz da porta ao lado acreditou que podia ser o rapaz do trapézio voador.
Todas as noites, o rapaz da porta ao lado pendurou-se no trapézio, a baloiçar de um lado para o outro, à espera de alguém que agarrasse a sua mão estendida.
Todas as noites, o rapaz da porta ao lado lançou-se do trapézio, num voo sem rede, à espera de ter uma mão estendida a que se agarrar.
Até que se cansou de esperar.
O rapaz da porta ao lado cansou-se de ser o rapaz do trapézio voador e quis voltar a ser apenas o rapaz da porta ao lado.
O rapaz da porta ao lado deixou de invejar o rapaz do trapézio voador porque descobriu que o rapaz do trapézio voador fazia da ilusão a sua vida, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, fazia da vida, sempre que queria, uma ilusão.

Moral da estória: o rapaz do trapézio voador pode parecer infinitamente mais interessante do que o rapaz da porta ao lado, mas não é, necessariamente, melhor ou mais feliz.

ou

De nada adianta fingirmos ser quem não somos. A ilusão pode durar um tempo, mas não é eterna.

25.5.07

Trompe-l'oeil


And so it is
Just like you said it would be

Life goes easy on me

Most of the time

And so it is

The shorter story

No love, no glory

No hero in her sky

I can't take my eyes off of you
I can't take my eyes off you

I can't take my eyes off of you

I can't take my eyes off you

I can't take my eyes off you

I can't take my eyes...

And so it is
Just like you said it should be

We'll both forget the breeze

Most of the time

And so it is
The colder water

The blower's daughter
The pupil in denial

I can't take my eyes off of you
I can't take my eyes off you

I can't take my eyes off of you

I can't take my eyes off you

I can't take my eyes off you
I can't take my eyes...

Did I say that I loathe you?
Did I say that I want to
Leave it all behind?

I can't take my mind off of you
I can't take my mind off you

I can't take my mind off of you

I can't take my mind off you

I can't take my mind off you

I can't take my mind...

My mind...my mind...
'
Til I find somebody new

(The Blowers Daughter, Damien Rice)


Vira e mexe, esta música ― que chegou a ter uma versão em português, cantada pela brasileira Simone (a posteriori, o Bob informou-me que existe também uma outra, que não conheço infelizmente, do Seu Jorge e Ana Carolina)― resolve aparecer para me atazanar o juízo. A primeira vez que a ouvi foi na banda sonora do filme Perto Demais (Closer, no original), de Mike Nichols. É uma música boa para a dor de corno, de cotovelo, mal de amor, tesão recolhida, o que quiserem, mas eu gosto, fazer o quê…
Não, não estou pró-depressivo… Bem pelo contrário, ando animado e cheio de más intenções (porque de boas, já lá diz o povo, está o inferno cheio! Rs*). Para utilizar um termo do meu comparsa Latinha, foi só mandar o bode pastar para bem longe da minha vista que o tempo clareou e o sol voltou a brilhar. Agora, Inês é morta (para quem não conhece a expressão, é uma alusão ao amor trágico de D. Pedro e D. Inês de Castro)!
Mas já que falei em Closer, sabem os quatro actores ― Julia Roberts, Jude Law, Natalie Portman e Clive Owen? Pois se tivesse que escolher um… ficava com todos (posso? Rs*). Não, também não estou em negação nem a fazer um retrocesso ― continua a valer a minha “teoria” de que acho a bissexualidade inviável a longo prazo, pelo menos para mim ―, mas uma coisa (ser gay ou estar a caminho de o ser, rs*) não exclui a outra (cobiçar o que é belo sem olhar ao género, rs*). Aliás, e aproveitando a deixa, há dias fui confrontado com um fait-divers que me rendeu à evidência. Passo a contar: em Amesterdão (Amesterdã para os amigos brasileiros), essa cidade democrática ― a única onde dormi numa camarata, com os meus valores debaixo da almofada, mas deixa para lá que a “associação de ideias” tem limites e a vossa paciência também ―, existe um bar onde as casas de banho (banheiros) não se dividem em masculino e feminino, mas sim em hétero ou gay… Fiquei a pensar no que faria, se estivesse lá, na hora do aperto… Conclui que, mesmo não tendo ninguém conhecido por perto, o mais certo seria eu ainda assim optar pela hétero! Aposto que a gay deve ser bem mais animada (no mínimo!), mas o rótulo ainda me faz comichão ― traduzindo: a ideia de ser gay já não me incomoda nada; o que me incomoda é saberem que sou. Afinal, Roma e Pavia não se fizeram num dia.



Cena de Shortbus, D.R.


E como hoje estou muito dado ao encadeamento discursivo, a questão do flagrante leva-me a outro facto ocorrido há uma semana. Fui ver, com um atraso considerável, Shortbus. É muito raro, eu cair de pára-quedas num filme sem, pelo menos, ter lido alguma coisa a respeito. Sabia por isso ao que ia. Quero dizer, mais ou menos.
Devo dizer que, mal a fita começou a rodar ― e lá estava eu, como gosto, quase sozinho na sala, esparramado numa fila de cadeiras só para mim, num final de tarde em que deveria estar a trabalhar ―, percebi logo que o filme ia superar em muito aquilo que tinha imaginado… Para já, e por ser, para todos os efeitos, uma obra comercial, nunca pensei que fosse tão sexualmente explícita ― sobretudo nas cenas entre homens, o que é muito pouco comum (nem Almodovar, na sua fase menos hollywoodesca, se atreveu a mostrar tanto em filmes como A lei do desejo) ―; depois, a sua mensagem apanhou-me na curva. Não estava à espera… Fiquei perturbado e a pensar na vida.
Em traços muito gerais, Shortbus é um clube de sexo livre onde vão parar, entre outras personagens, a terapeuta sexual, que prefere ser chamada de conselheira conjugal, que nunca teve um orgasmo, o gay, ex-modelo, que procura o seu par ideal, a dominatrice-que-o-quer-deixar de-ser-mas-não-sabe-como, ou ainda o casal gay, em que um deles, ex-prostituto, filma os seus passos até à concretização de um suicídio (falhado) por não se conseguir entregar ao amor.
Enfim, a moral da estória, a haver uma, é que o sexo pelo sexo pode ser muito libertador durante um tempo, mas quem faz disso um modo de vida, e não dá espaço para que outros sentimentos e sensações aflorem, acaba, mais cedo ou mais tarde, mergulhado num vazio brutal. Nem de propósito. Sai de lá zonzo.

22.5.07

A manhã seguinte-Parte II


Who do you need,
Who do you love

When you come undone

(Come undone, Duran Duran)


(Ler Parte I)
Uma súbita ameaça de erecção fê-lo voltar a si. Não podia fraquejar. A sua intenção era clara. Sempre fora. Para ele, pelo menos. Aproximara-se do outro com o firme propósito de o seduzir e descartar a seguir. Com a idade, tinha adquirido um talento especial para eleger as suas presas. Sabia detectar, à légua, os seus pontos fracos e era por aí que atacava. Não via nada de particularmente condenável no seu comportamento predatório. Pelo contrário, até sentia um certo orgulho em ser prático e objectivo. Não queria amor nem paixões arrebatadoras na sua vida. Tinha a sua profissão, que lhe consumia quase todas as forças, a sua família, o porto seguro a que voltava de vez em quando, e um grupo de amigos cada vez menor, mas que ainda assim não faltava ao seu chamado quando precisava deles. No resto, chegara à conclusão, muitos anos antes, de que misturar sexo com amor era pura perda de tempo e de energia.

Também não queria sexo só pelo sexo. Gostava do jogo do gato e do rato. Gostava de brincar com a sua presa antes da estocada final e dar-lhe, se ela tivesse sangue-frio para isso, a oportunidade de fugir. Perdia rapidamente o interesse no jogo se o seu parceiro demonstrava demasiada previsibilidade ― a dificuldade aguçava-lhe o instinto e fazia com que a capitulação final soubesse melhor ―, mas deixava igualmente de achar graça se, por algum acaso, o jogo caia num impasse e ameaçava prolongar-se indefinidamente. Ai, batia em retirada e ia à procura de nova vítima. A sua estratégia de caçador consistia em chegar-se a ela, depois de a eleger como o alvo mais vulnerável da manada, de mansinho. Cheio de cuidados para não a espantar. Simulava uma distância que desse à sua presa a sensação de estar a salvo, mas, à medida que ganhava à sua confiança, reduzia cada vez mais o espaço entre ambos. Quando a presa se apercebia, já estava suficientemente enredada na sua teia. Na maior parte dos casos, a cumplicidade entre os dois era já tão grande, que a presa nem se debatia ou oferecia resistência. Aliás, nada lhe dava maior gozo do que ser a presa a implorar-lhe para ser devorada.

Sorrateiro, deslizou até à beira da cama e pôs-se de pé. No lugar agora vago, o seu corpo continuava marcado no lençol como uma impressão digital. A sua primeira reacção foi a de passar a mão para o alisar ― como teria feito qualquer caçador furtivo que não quer deixar marcas da sua passagem ―, mas o receio de acordar o outro demoveu-o. Contrariado, começou à procura da roupa espalhada pelo chão. Agradou-lhe o contacto dos pés descalços com o soalho de madeira. Uma a uma, recolheu todas as peças, mas faltava-lhe um ténis. Sem fazer movimentos bruscos, abaixou-se e espreitou para debaixo da cama. Para seu alívio, estava ali.

Pé ante pé, aliviou o seu peso, o mais que pôde, para não fazer o chão ranger, contornou a cama e começou a dirigir-se à porta. Para verificar se o outro não dera por nada, espreitou uma última vez. Estava tudo na mesma, mas a cama pareceu-lhe muito maior. De repente, deixou de ver o outro para se ver a si reflectido num espelho que até então lhe escapara: um corpo nu, de pé, com roupas amontoadas nas mãos. Um fugitivo. Experimentou uma sensação estranha, de absoluto vazio, igual a que deve sentir a vítima de um vampiro depois deste lhe sugar o último sopro de vida. Nunca fora dado a sentimentalismos ― e se foi, já nem se lembrava do dia em que o deixara de ser. Semelhante constatação acertou-lhe em cheio, como uma pancada dada à traição.

Atordoado, saiu do quarto e fechou a porta atrás de si. Muito devagar. Deixou-se ficar por uns instantes amparado à ombreira. Queria começar a vestir-se e sair para a rua, mas algo retardava os seus gestos. Sem querer, começaram a vir-lhe à cabeça imagens em catadupas. Como num filme, pôde rever algumas conversas; o pudor do outro em se despedir dele pela primeira vez com um beijo; a forma divertida, e irónica, como reagia às suas alfinetadas; o jeito pueril como corou quando ele lhe segredou ao ouvido que não via a hora de o foder; o seu olhar, ao mesmo tempo assustado e ardente, quando se recostou na cama e, sem palavras, lhe deu sinal para avançar… Era como se estivesse a acontecer tudo outra vez diante dos seus olhos.

Quando, em que momento, sem ele que se tivesse dado conta, tudo aquilo havia deixado de ser um jogo, um exercício de sedução ― para si, pois para o outro, ele sempre o soubera, nunca o fora ― para passar a ser uma armadilha? O feitiço virou-se contra o feiticeiro: empenhou-se em acreditar, e consegui-o por anos a fios, de que o sexo era menos prejudicial à sua paz de espírito do que o amor. A fragilidade do seu plano, no fundo, sempre estivera exposta; ele é que não quis enxergar. Quem procura sexo fortuito não se dá ao trabalho de estabelecer laços de cumplicidade, ainda que provisórios e sob a desculpa de tornar tudo mais excitante, mas deixou-se cegar pela vaidade. A vaidade de quem se habituou a manipular as emoções alheias, criando nos outros a ilusão de que se estava também a dar, quando, na verdade, não estava. Iludiu-se de que poderia viver assim para sempre. Incólume. Mas ninguém brinca com o fogo impunemente.

Num gesto mais emotivo do que racional, girou a maçaneta da porta e entrou de novo no quarto. O outro permanecia na posição em que o havia deixado. Aninhado sobre si mesmo, quem sabe a precaver-se, ainda que instintivamente, do abandono que esteve iminente. Foi invadido por uma sensação que, até há pouco, teria confundido com mero desejo. Todavia, não foi capaz, naquele momento, de reconhecer o arroubo de ternura, mas cedeu quando uma força o impeliu para a cama. Largou a roupa no chão. O seu lugar mantinha-se vago e quente. Tudo voltou a fazer sentido. Como se ele nunca tivesse saído. Sentiu-se tentado a aconchegar-se mais, a abraçá-lo, mas resistiu desta vez. Foi o outro, ao pressentir a sua presença, que recuou e se encaixou nele. Continuava a dormir. Toda a pele do seu corpo reagiu àquela comunhão, mas mantinha-se hirto. Mas foi então que o vazio, que ainda há pouco o havia deixado tão angustiado, desapareceu para dar lugar a uma felicidade como há muito não sentia. Cedeu, por fim. E assim, pela primeira vez em muitos anos, permitiu-se amanhecer abraçado a alguém.

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Dedicado a todos aqueles que andam por ai a enganar-se ― convencidos de que os iludidos são os outros, os que têm a generosidade de se mostrarem com são e não têm medo de se entregarem ―, até provarem do seu próprio veneno. E com isto, espero também ter encerrado, de vez, mais um capítulo na minha vida.

18.5.07

A manhã seguinte-Parte I


My heart was blinded by you.
I've kissed your lips and held your hand.

Shared your dreams and shared your bed.

I know you well, I know your smell.

I've been addicted to you.

Goodbye my lover.
Goodbye my friend.

You have been the one.

You have been the one for me.

(Goodbye my lover, James Blunt)


Pela janela mal fechada, vislumbrou a primeira luz do dia. Não tardaria muito a amanhecer. Reconheceu o barulho de um autocarro a passar na rua. Ia começar a espreguiçar-se lentamente, como sempre fazia ao despertar, mas conteve-se a tempo. Não queria acordá-lo. O outro estava deitado de lado, de costas voltadas. Pelo barulho da sua respiração ronronante, adivinhou que ainda dormia profundamente. Melhor assim, pensou.

Deslizou o seu corpo tão devagar quanto possível, até ficar de barriga para cima, a olhar para o tecto. Estranhara a cama, a almofada, tudo. Não estava no seu elemento. Tinha esse problema, o de nunca conseguir dormir bem numa cama que não fosse a sua. O certo teria sido partir mais cedo, mas as coisas precipitaram-se de tal forma que não teve como escapar antes. Por sua vontade, teriam ido para um sítio neutro, um qualquer quarto de uma pensão rasca, paga à hora, mas o outro não aceitou nenhum dos seus argumentos e insistiu em trazê-lo para a sua casa. Das duas, uma: era um inconsequente ou, pior, um daqueles tolos ingénuos, tão carentes de companhia, que estão mesmo dispostos a abrir mão da sua intimidade com um tipo que mal conhecem. Sentiu um leve tremor de desprezo a percorrer-lhe o corpo. Tinha de sair dali o mais depressa possível.

Como um prisioneiro de guerra, começou a engendrar a sua táctica de fuga sem levantar suspeitas. Com os olhos já habituados à semi-penumbra do quarto ― ele só conseguia dormir na escuridão total, mas deu graças por os cortinados terem ficado entreabertos ―, varreu tudo até ficar familiarizado com a geografia do lugar. Era um quarto relativamente acanhado ― aliás, como o resto do apartamento, do pouco que se recordava de ter visto na véspera ―, mas agradável. Paredes nuas, à excepção de uma enorme fotografia a preto e branco, que não lhe era totalmente estranha, pendurada por cima da sua cabeça. Para além da cama de casal, onde se encontravam, um cadeirão de verga junto à janela, uma pilha de livros de arte a servir de mesa-de-cabeceira do seu lado e um roupeiro que ocupava uma parede inteira, sem portas, onde podia ver roupa, sapatos, CD’s, uma aparelhagem Hi-Fi, e mais livros… A disposição da parca mobília e a forma como as coisas estavam arrumadas denunciavam uma intenção, uma ordem. Não tinha dúvidas, ao seu lado dormia um tipo meticuloso.

Aliás, dava-se agora conta que as únicas peças fora do lugar eram as suas roupas ― e só mesmo elas, porque, para sua enorme surpresa, apercebia-se disso naquele exacto momento, as roupas do outro estavam dobradas sobre o cadeirão (como é que conseguira fazer isso, sem que ele se desse conta, no calor do momento, haveria de permanecer um mistério) ―, despidas à pressa, pois, lembrava-se bem, tinha chegado ali consumido pela tesão, louco para jogar o outro na cama e saciar a sua fome.

Nisto, detectou o primeiro erro que lhe poderia sair caro. Tinha ficado do lado da janela e o outro dormia voltado para a porta, o que aumentava em muito as probabilidades de vir a ser apanhado em flagrante quando se preparasse para sair de fininho. Quase deixou escapar um “Merda!” sonoro, mas engoliu em seco. Como se tivesse pressentido a sua crescente agitação, o outro mexeu-se. Ele paralisou. Felizmente, o outro deixou-se ficar onde estava; apenas se aninhou. Parecia uma criança. Pela primeira vez desde que acordara, olhou-o com atenção. O seu corpo nu havia escapado quase por completo ao lençol, pelo que estava à sua mercê. Admirou-lhe as costas lisas, mas um feixe de luz, vindo da janela, pousava sobre elas e revelava uma fina penugem escura, que em nada diminuía o encanto da sua pele bronzeada. O seu pescoço, que tinha beijado com sofreguidão, era esguio, coroado por uma melena escura, onde ele tinha afundado os seus dedos e sentido a réstia de perfume, pousada em desalinho sobre a fronha amarrotada. As nádegas, que o tinham deixado enlouquecido ainda antes de as possuir, eram firmes e bem delineadas, tal como as suas pernas, que estavam dobradas.

Não os viu da posição em que se encontrava, mas lembrou-se também dos seus pés. Tinha um verdadeiro fascínio por pés masculinos, pelo que os seus amantes podiam sempre contar com uma atenção especial a essa parte tão injustamente esquecida nos jogos de cama, e que ele tanto gostava de massajar e de beijar. Alguns, e não podia deixar de sorrir quando se lembrava disso, reagiam com estranheza a essa sua predilecção e mostravam-se quase desconfiados. Não sabiam o que perdiam! Mas o outro tinha reagido muito bem aos estímulos da sua língua.
(continua...)

16.5.07

O braço-de-ferro


Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não pára

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso, faço hora, vou na valsa

A vida é tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal

Eu finjo ter paciência

O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós

Um pouco mais de paciência

Será que é o tempo que me falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder

E quem quer saber

A vida é tão rara (Tão rara)

(Paciência, Lenine e Dudu Falcão)


Dizem que saber esperar é uma virtude. Será? Se assim for, não serei o mais virtuoso dos homens. Não que seja totalmente impaciente ou irascível ― até sou paciente demais, comigo sobretudo, quando se trata de empurrar com a barriga decisões que há muito deveriam ter sido tomadas… ―, mas continuo a ferver em pouca água e a perder o prumo com facilidade. Ser paciente não é fácil. Não é mesmo nada fácil.

Dizem que a idade nos traz outra calma, outra maturidade. Será? Acho que sim. A mim, pelo menos, noto que me deu outro jogo de cintura para lidar com situações difíceis de (di)gerir. Ouvir um NÃO, por exemplo. Ninguém gosta de ouvir um NÃO, mas, com o tempo, aprendemos que NÃO é, necessariamente, o fim do mundo. Um NÃO pode ser contrariado, contestado, mas perceber (e aceitar) um NÃO definitivo é, sem dúvida, um acto de inteligência e de maturidade. Há coisas pelas quais vale a pena lutar, esbracejar até, se for preciso; outras que são pura perda de energia e que estão condenadas a acabar sem glória e, pior, sem razão. Nos dias que correm, eu prefiro mil vezes ouvir um NÃO assumido e justificado do que um sim enganador, dito da boca p'ra fora por quem não tem tomates (coragem) para dizer logo NÃO.

Há dias encontrei alguém que não soube acatar o meu NÃO. Alguém que se expôs, talvez, mais do que devia, que forçou uma situação muito para lá do razoável e que não soube parar a tempo. Poderíamos ter ficado amigos. Aliás, convinha termos ficado, no mínimo, bons colegas, pois nada garante que a vida não nos volte a juntar numa outra viagem de trabalho. Viu-me e só não me ignorou por completo porque não podia. Acho que confundiu recusa com desprezo. Gostaria de lhe dizer ― quem sabe um dia ― que ser rejeitado não é, de facto, agradável ― sei-o por experiência própria ―, mas também não é, necessariamente, um atentado à nossa dignidade. É o que dá confundir amor-próprio com orgulho ― quando feridos, o primeiro faz com que vejamos apenas o problema em nós, mas o segundo faz com que vejamos apenas o problema no(s) outro(s).

Dizem que a ilusão é meio caminho andado para a desilusão. Será? A ser verdade, parece-me triste a sina de quem vive sem ilusão… Mas estou tentado a concordar que a ilusão precisa de freio. Nem a mais, nem a menos. Na medida certa. É por esta, e por outras, que já estou a tratar de ser mais modesto nas minhas aspirações (não quer dizer que tenha deixado de ter critério, okay?). Agora, sempre que me flagro a lançar o anzol a quem está fora do meu alcance, trato logo de começar a puxar o meu barco. Não é preciso ficar, sistematicamente, fora de pé para encontrarmos aquilo que buscamos. Fiz isso a minha vida toda… Cansei-me de morrer na praia.

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Este blogue comemora hoje dois meses. O Maurice, que leio e admiro, resolveu incluir-me num grupo que, segundo ele, merece o Thinking Blogger Award. Esta é uma iniciativa que já circula há algum tempo na blogosfera e que consiste em eleger blogues de que gostamos e que nos fazem pensar. Sou um pouco avesso a estes “prémios”, mas não sou ingrato. Apreciei o gesto, que agradeço humildemente, e que vale, sobretudo, pelo facto de estar a conseguir interagir com outras pessoas ― o perigo de um blogue confessional como o meu é o de acabarmos fechados numa concha, onde só ouvimos o nosso próprio eco. Seria da praxe eu dar continuidade ao ciclo, apontando também os meus favoritos. Pois são todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, estão aqui ao lado (e não só). Sintam-se, por isso, devidamente distinguidos.

12.5.07

Roupa a lavar (2)


This one goes out to the one I love
This one goes out to the one I left behind

A simple prop - to occupy my time

This one goes out to the one I love

(The One I Love, REM)


Um pouco de disciplina nunca fez mal a ninguém. Depois de meses e meses sem levar muito a sério o ginásio (academia), eis que começo a criar uma rotina de treino e a surpreender-me com a rapidez que estou a voltar à forma antiga. Ainda não estou lá, mas chego lá, chego pois.
Só que, como em tudo na vida, ganha-se num lado e perde-se noutro. Como estou mais seco, recupero o número que sempre me acompanhou enquanto jovem adulto (embora, hoje, eu esteja mais, em rigor da verdade, para adulto ainda jovem…), mas, em contrapartida, dois pares de jeans comprados não há muito tempo começam agora a não me assentar tão bem. E há coisa pior do que uns jeans com pano a sobrar onde não deve? Bom, pior há, mas que não gosto de ver, não gosto. Já ando a sondar o mercado em busca de novos modelos, mas as opções são tantas que, em vez de me facilitarem a vida, só complicam. Cintura mais acima, cintura mais abaixo, bolsos dos lados ou chapados, ganga escura ou pré-lavada, pernas mais largas ou mais estreitas, costuras mais ou menos visíveis… Admito que é uma preocupação fútil, mas um homem tem direito a sonhar com uns jeans que lhe assentem bem, ou não? Que saudades tenho de quando bastavam uns simples Levi’s 501 para eu me dar por satisfeito…

Como tenho a mania que sou moderno ― um “clássico moderno” como alguém teve a finesse de me catalogar um dia (ou seria antes um moderno clássico?) ―, faz um ano que aposentei as minhas trocas constantes de barbeiro (agora são todos cabeleireiros, mas eu continuo a achar piada ao termo antigo) e decidi fidelizar-me a um cabeleireiro da moda (a este não dá mesmo para chamar de barbeiro!), ali para os lados do Chiado, na Baixa lisboeta. Pois bem, como é muito solicitado, o dono do salão só arranjou tempo para colocar as preciosas mãos de mago "Vidal Sasson" no meu couro cabeludo uma ou duas vezes no máximo ― e olhe lá! ―, pelo que tenho andado entregue aos seus “meninos”.
Adiante. Desta última vez, calhou-me em sorte um tal de Rui. Sei lá eu quem é o Rui, não conheço nenhum Rui, argumentei quando fiz a marcação por telefone ― no barbeiro, eu chegava sem avisar e era sempre atendido, mas nos cabeleireiros, ai de quem não marcar hora! ―, mas não tive sorte nenhuma: a recepcionista, cuja cor de cabelo me lembra um chiclete mascado, garantiu-me que a estrela do salão não tinha vaga para me atender nos próximos dias e que o Rui é um bom profissional, que já trabalha lá há muito tempo, coisa e tal… Fazer o quê, resignei-me. À falta de melhor, fui de Rui mesmo.
Depois de ter explicado ao Rui, que se revelou um rapaz simpático, o que queria, é claro que o Rui não cumpriu à risca aquilo que eu lhe tinha pedido. O Rui fez as coisas à sua maneira e eu saí de lá a jurar a mim mesmo que o Rui não voltaria a pôr as mãos no meu rico cabelo. Mas não é que, passados uns dias, tenho de dar a mão à palmatória! Há muito tempo que não me gostava tanto de ver com um corte de cabelo. Que nos sirva a todos de lição: não rejeitem à partida um Rui cujos talentos desconhecem!

Aproveito uma viagem de trabalho para marcar um almoço com um antigo colega de faculdade, que não vejo há um bom tempo. Nunca fomos amigos íntimos, mas também nunca perdemos o contacto por completo ao longo dos anos. Nos tempos de farra da universidade, fiquei com uma certa desconfiança em relação à sua sexualidade ― não que ele desse pinta, até pelo contrário ―, mas foi coisa que nunca me preocupou por ai além (também eu, na altura, não estava para aí virado, mas hoje vejo que o radar já funcionava…). Uns anos depois da formatura, começo a ouvir uns zunzuns, sempre muito discretos, de que o tal colega estaria a viver com um sujeito. Não fiquei totalmente surpreendido, como imaginam. Neste almoço, a sós, senti por mais de uma vez que ele esteve quase a tocar no assunto, mas decidi não ir por ai. Até me faria bem ter com quem desabafar, mas moramos longe, o nosso contacto é esporádico e não adiantaria de nada. O almoço serviu-me, no entanto, para confirmar outra suspeita: um outro colega de curso (de um ano a seguir), que deu em cima de mim numa noite de copos durante uma viagem de trabalho ― e de quem já falei aqui ―, é do ramo e não se faz rogado a “cantar” quem lhe interessa. Esse, se fosse hoje, não me escaparia ― é um tipo charmoso e inteligente, cujo trabalho, na mesma área que a minha, acompanho à distância.

Volto ao cenário do ginásio. De repente, um tipo (cara) que não reconheço à primeira (nem à segunda...), interpela-me e pergunta-me se não era do curso X da universidade Y… Sou apanhado à queima-roupa ― a verdade é que vinha do banho e estava apenas enrolado numa toalha, o que, convenhamos, não facilita a conversa com fulanos de quem nem nos lembramos mais ―, mas lá respondo que sim. Como a minha universidade era um ovo, em que todos se conheciam, acabo por perceber que o fulano estava um ano ou dois mais adiantado do que eu e que no meu último período universitário o tive como assistente de um professor. O fulano deu-me na altura o único 18 que tive durante o curso. Abençoado! E, passados uns bons anos, não é que ainda se sai com esta pérola: você está tal e qual! Não estou, mas o facto de lhe parecer que estou igual ― e olhem que durante o curso nunca nos vimos com tão pouca roupa em cima! ―, caiu-me bem. Agora, sempre que o vejo, faço questão de o cumprimentar. Lol

De novo no comboio (trem). Tenho que começar a ter cuidado. Já vos disse aqui que estou naquela fase de novidade em que o olhar é um brinquedo. Pois eu, como não quero de todo expor-me, nem faz o meu género andar a engatar (azarar) na rua, tenho de refrear o meu olhar de provocação. Desta feita, um rapaz, uns bons dez anos mais novo do que eu, senta-se à minha frente. Tem uns olhos verdes bonitos e percebo-o várias vezes a mirar-me discretamente. Por mais de uma vez, flagrámo-nos um ao outro. É o tipo de coisa inocente e sem consequências ― e que me faz bem ao ego, afinal ele era mais novo do que eu, mas ainda assim não lhe fui indiferente ―, mas não me posso dar ao luxo de (continuar a) correr este tipo de riscos.

Tenham um bom fim-de-semana, que eu também vou fazer por isso, ai se vou!

9.5.07

O beco


Abandona o bar a medo, mas o chamamento é mais forte. Tenta abstrair-se do eco quase ensurdecedor do seu coração a bater disparado. O bar está apinhado, mas na rua mal iluminada não se vê vivalma àquela hora da madrugada. Do outro, nem sinal. Não pode ter ido muito longe, pensa. Hesita por um instante, mas repara num beco mais a frente. Aproxima-se. Está ofegante e o suor escorre-lhe pelo rosto, apesar da brisa fresca. Avança, mas logo recua atordoado. Um cão escanzelado sai enxotado da ruela e quase esbarra nele quando se preparava para dobrar a esquina. Refaz-se do susto. Está agora à entrada do beco. Como imaginava, é um gaveto entre dois prédios, um lugar sombrio, sem janelas, com um odor fétido a urina e a restos de lixo. Dá mais alguns passos. Os seus olhos demoram algum tempo a habituar-se à escuridão ― aquele beco está ainda menos iluminado do que a rua de onde veio. É uma loucura o que está a fazer, sabe-o bem, mas o desejo sobrepõe-se já à razão.

Vê primeiro a ponta incandescente de um cigarro, só depois o distingue a ele. Encostado à parede com um olhar aceso. Está à sua espera. Sente-se tentado a correr dali para fora, mas as suas pernas fazem precisamente o contrário, obedecendo a uma ordem que ele não se lembra de ter dado. Estão frente a frente. E assim ficam por um tempo que lhe parece absurdamente longo. Não sabe o que fazer a seguir. Por fim, o outro atira a beata para o chão. Fá-lo sem pressas e nem se dá ao trabalho de a pisar. Agarra-o pelo pescoço e puxa-o para si. Beijam-se com sofreguidão. Além da mão no pescoço, que não o deixa descolar do beijo, uma outra mão pesada começa a deslizar por si. Detém-se na braguilha. Sente o seu baixo-ventre em carne viva por debaixo da roupa.

O outro solta-lhe a boca, mas não o larga e empurra-o contra a parede, onde fica pespegado como um animal encurralado. A libertação da adrenalina não lhe permite sentir medo, apesar de se saber cada vez mais indefeso. O outro, sem proferir uma única palavra, baixa-se e mergulha entre as suas pernas. Sente-se fraquejar à medida que é devorado. Qual presa na boca do predador faminto. O seu corpo, que se lhe afigura como uma entidade separada de tudo o resto, estremece resfolegante. Apesar de bem amparado pela parede, sente uma vertigem e, por momentos, não sabe onde agarrar-se quando se vê à beira do precipício. Mas eis que o torpor o abandona e, aos poucos, sente-se voltar ao seu corpo.

O outro não lhe dá descanso. Aproveita que as suas calças estão desapertadas e fá-las descer até à altura dos joelhos. Os seus gestos continuam bruscos e certeiros. Ele obedece mais uma vez. Sem dizer um ai. Mesmo quando o outro o vira de rosto contra a parede. De costas voltadas, pressente os movimentos alheios. Deixa-se estar. Agora é tarde demais para recuar. O outro chega-se a si e entra à força, sem cerimónia. O vaivém dos corpos obriga-o a roçar-se vezes sem conta na parede rugosa, mas essa é uma dor que só sentirá mais tarde. Por agora, o seu corpo está demasiado febril e não lhe obedece. O ímpeto do outro começa a amainar, até que se esgota por completo. Ele não se mexe. Com o rosto colado à parede. De costas voltadas. Primeiro, ouve o outro compor-se, e só depois a afastar-se. Ele deixa-se ficar mais um pouco. Sente-se esvaziado, mas saciado. Dá-se conta que do outro não se recorda mais do que de dois olhos acesos num beco sem saída.

7.5.07

O puzzle

Who said
broken pieces don't mend

I say

I say to think again

(Grow, Kubb)


A blogosfera tem destas coisas. Fui apanhado no meio de uma corrente. Manda a prudência não esbracejar, não contrariar e deixarmo-nos ir. Foi o que fiz, caro Pinguim. Se a intenção do desafio era descobrir um pouco mais de mim, repto aceite. Fico só curioso em saber que traço, ou traços, de carácter podem ser presumidos a partir das minhas respostas.


Se fosse uma hora do dia, seria o lusco-fusco.
Se fosse um astro, seria um cometa, um vagabundo no espaço.
Se fosse uma direcção, por ser desnorteado, seria o Sul.











Se fosse um móvel, seria a poltrona Egg de Arne Jacobsen.






Se fosse um líquido, seria a água da chuva.
Se fosse um pecado, seria ― já sou ― a preguiça.
Se fosse uma pedra, seria o travertino, que envelhece bem.
Se fosse uma árvore, seria um sobreiro, porque cresci com um por perto.








Se fosse um fruto, seria um figo, porque me lembra o Verão e o meu avô materno.







Se fosse um clima, seria temperado, com todas as estações.







Se fosse uma flor, seria um jarro ou um lótus.







Se fosse um instrumento musical, seria um violoncelo.
Se fosse um elemento, seria ― e sou por signo ― ar.
Se fosse uma cor, seria azul-indigo.

Se fosse um animal, voltaria a ser um Homem, o único capaz de se defender dos outros homens.

Se fosse um som, seria a ilusão do mar dentro de um búzio.

Se fosse uma música, numa noite de amor seria
Dance me to the end of Love, de Leonard Cohen; numa noite solitária de tempestade seria A Morte e a Donzela, de Schubert.
Se fosse um sentimento, seria cumplicidade, a base de tudo.

Se fosse um livro, seria
Divina Comédia, de Dante.
Se fosse uma comida, seria o Bacalhau com Broa do Pap’Açorda.

Se fosse um lugar, seria, de preferência, um onde tenha sido feliz.

Se fosse um gosto, seria acidulado

Se fosse um cheiro, seria Lúcia-lima (erva-limão) ao amanhecer, canela ao entardecer, e cheiro a terra molhada ao anoitecer.

Se fosse uma palavra, seria DIGNIDADE.

Se fosse um verbo, seria VIAJAR, porque a vida é uma grande viagem.

Se fosse um objecto, seria um talismã.

Se fosse uma peça de roupa, seria uma camisa preta Gucci que tenho no armário e me intimida.

Se fosse uma parte do corpo, seria a pele, o maior órgão e também um dos mais sensoriais.

Se fosse uma expressão facial, seria um olhar de provocação.

Se fosse uma personagem de banda-desenhada, seria Corto Maltese, o marinheiro errante.












Se fosse um filme, seria Il Gattopardo (O Leopardo), de Luchino Visconti.


Se fosse uma forma, seria uma elipse.
Se fosse um número, seria o 6.

Se fosse uma estação, seria a Primavera.

Se fosse uma frase, neste momento seria”Pobre do Homem cujos prazeres dependem da aprovação alheia” (Madonna
dixit).

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Post scriptum: esqueci-me que uma das regras deste desafio é passar a outros e não aos mesmos. Pois as minhas vítimas são:

Edu-Beijo; Bluebob-Mr. Hyde; Ricardo-O que me define; Moura ao Luar; Latinha-Tin Man. Toca a responder.

4.5.07

Roupa a lavar


If it makes you happy, it can’t be that bad!
(Sherly Crow)


Decido que estou a precisar de uma camisa branca mais informal. Vou à loja Pepe Jeans no Saldanha, no centro de Lisboa. Não me consigo decidir por uns modelos que acho demasiado justos no corpo (ler demasiado “abichanados” para meu gosto), mas logo dois empregados solícitos, um rapaz e uma rapariga (moça, ok?), decidem vir em meu socorro. É claro que querem ganhar a cobiçada comissão, mas noto ali um certo frisson no seu comportamento, confirmado mais tarde através de risinhos nervosos e de um ou outro comentário que intercepto entre os dois. Estou a agradar ao menino e à menina, e isso, por sua vez, agrada-me também ― afinal, sou um tipo comum que passa despercebido na multidão. Resolvo ser simpático. A ele deixo-o espreitar no provador enquanto estou a experimentar as camisas. A ela, quando estou a pagar, respondo à sua provocação quando me pergunta se o que trago pendurado ao pescoço é um MP3. Estendo-lhe um auscultador e deixo-a ouvir Ute Lemper. Desconfio que ela não sabe quem é, mas não faz mal. Saio de lá com uma camisa nova e com o ego afagado.

Entro no comboio (já vos disse que adoro andar de comboio/trem?) e procuro um lugar junto à janela. Estão todos tomados, pelo que escolho um ao lado de um rapaz jovem. Ainda antes de me sentar, ele vira-se. Aquele rosto é-me familiar. Já o vi antes. È um miúdo comparado comigo (não tenho tesão por miúdos muito mais novos do que eu, antes que se apressem a tirar conclusões), mas, como da outra vez em que o notei, não deixo de reparar que é bonito, com um ar tímido que me diverte. Também eu já fui (e ainda sou, até certo ponto) um miúdo tímido. Ele olha para mim de lado e eu retribuo o olhar (uma coisa muito soft, ok?, que não ando por ai a dar bandeira). Estamos os dois de auscultadores nos ouvidos. Quando sente o meu olhar, ele cora imediatamente e desvia a sua atenção para a janela. Fica assim até sair.

As voltas que a vida dá. Há uns bons anos, teria eu mais ou menos a idade dele, estudava em França e, num certo dia, um tipo estranho (nada a ver comigo, que tenho bom ar…lol) sentou-se ao meu lado no autocarro (ônibus). A dada altura, além de me lançar uns olhares esgazeados, começou a apertar-me contra a janela. Não tinha por onde me mexer, mas estava tão assarapantado que nem reagi (ah, se fosse hoje…). Felizmente, a minha paragem não tardou e sai apressado. Não sem antes ele se levantar para me deixar passar e me mirar da cabeça aos pés. Desci e segui até a um supermercado onde fazia compras. Pelo caminho, tive a sensação de que estava a ser seguido, mas não ousei olhar para trás. Entrei no supermercado, mas quando andava no meio dos corredores, vi a figura sinistra a olhar para um lado e para outro qual barata tonta. Tive a certeza, naquele instante, que andava à minha procura. Meti-me na fila para pagar. Acho que devia estar com suores frios. Por fim, ele avistou-me e chegou de mansinho. Estava hirto que nem um carapau. Como era o último da fila, ele teve a vida facilitada: encostou a cabeça ao meu ouvido e perguntou-me se queria ir beber um café com ele… Tinha 22 anos, sair ou dormir com homens estava fora do meu horizonte, e só consegui balbuciar um sumido: Je ne crois pas (não creio)... O homem evaporou-se tão rápido como apareceu. Eu acho que ainda fiquei a tremer uns bons minutos, perante o olhar incrédulo da senhora que estava à minha frente.

Enfim, lembrei-me da estória, mas é claro que não tem nada a ver com que se passou agora. Apenas gostei, confesso, de fazer o rapazinho corar. E revi-me nele, de certa forma.

Há por ai um mundo de possibilidades. Sinto-o. Mas é claro que insisto em manter-me encantado com um gajo que não sabe o que quer. Não anda nem desanda. Diz sim, mas é um sim frouxo, em cima do muro, a meio caminho para lado nenhum. Custa tanto assim dizer não? E se é sim que quer dizer, por que não assume e se deixa de merdas… Quem lhe deu já duas oportunidades, não lhe vai dar a terceira. Cansei. Vá para o Diabo que o carregue. E, já agora, eu também por ser um idiota e por continuar a escolher sempre os caminhos mais longos e tortuosos.

Bom fim-de-semana!