30.7.07

Mémoires

Brian Molko, vocalista dos Placebo

Encosta-te a mim, nós já vivemos cem mil anos
encosta-te a mim, talvez eu esteja a exagerar
encosta-te a mim, dá cabo dos teus desenganos
não queiras ver quem eu não sou, deixa-me chegar

Chegado da guerra, fiz tudo p´ra sobreviver
em nome da terra, no fundo p´ra te merecer
recebe-me bem, não desencantes os meus passos
faz de mim o teu herói, não quero adormecer

Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo
o que não vivi, hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim

(Encosta-te a Mim, por Jorge Palma, escutar aqui)


Gosto de ser original, mas não me importo mesmo nada, neste caso, de ser só mais um entre os que estão rendidos à mais nova música de Jorge Palma, Encosta-te a Mim, que faz parte do álbum Voo Nocturno. Eu diria que é quase impossível ficar indiferente à letra, mas cada um sabe de si. Só sei que, ao visionar o clipe, reproduzido neste post graças ao abençoado Youtube, fui sendo invadido por uma onda de nostalgia. Mas nostalgia das boas, daquelas que dão gosto sentir.

Por ali passa muita gente, de artistas a músicos, que fez parte da minha mais tenra juventude e ao som de quem vivi (e vivo) tanta coisa digna de ser recordada. Foi quase inevitável lembrar-me daquele apartamento no Saldanha (centro de Lisboa), onde vivia um colega meu da universidade, mesmo por cima da casa do Jorge Palma. Vira e mexe, organizávamos ali jantaradas que descambavam ao mesmo ritmo vertiginoso com que esvaziávamos as garrafas de vinho… Numa delas, particularmente surreal, lembro-me que, num dado momento, alguém se debruçou na janela da cozinha e nem o ar condicionado do Jorge Palma escapou ao amargo de boca de um fim de festa atribulado… Seja como for, nunca constou que tivesse reclamado… Não fosse Palma, himself, um “ganda” maluco! Bons tempos aqueles… hehehehehe!

Ainda no clipe, revejo também Xana (brasileiros, nada de interpretações maldosas, Xana é só mesmo o diminutivo/apelido de Alexandra, tá?), aquela que será sempre para mim a vocalista dos Rádio Macau, uma banda de referência dos meus “anos loucos”. Era comum encontrarmos a Xana na Rua Luís de Camões, onde ela então vivia com o Zé Pedro dos Xutos & Pontapés, e onde nós íamos lanchar nos intervalos das aulas. Achávamos que éramos íntimos, heheheheheh. Melhor mesmo foi um concerto… Sei que não foi em Lisboa, mas lembro-me de que eu e o meu melhor amigo na altura ― deixámo-lo de ser um pouco antes do seu inesperado divórcio e de ter decidido “fugir” de Portugal…― fizemos questão de gritar pela “Xana” o tempo todo…Só tinha graça para nós, pois até ela, a “miúda das nossas vidas” (que eu preferi manter, até hoje aliás, só como amiga para não perder a amizade dele, que chegou a ser seu marido…), envergonhada, fez de conta que não nos conhecia durante todo o tempo em que estivemos naquele disparate… eheheheheheh!

E já que abri a “sessão nostalgia”, nem de propósito, fui jantar na passada sexta com uma amiga, que já não via há uns bons meses, a um dos meus bairros de eleição em Lisboa. Dei-me conta que frequento há quase 20 anos o Bairro Alto, porque é ali, independentemente de modas, que as minhas noites têm outro sabor. Até posso passar temporadas sem lá ir, mas volto. Sempre volto. Apesar da noite abafada de Verão, daquelas que hoje já vão sendo raras, resolvi enfiar-me nuns jeans pretos da Levi’s ― recuperei-os do armário, quase novos, e podem ser agora considerados uma peça vintage, já que a marca não fabrica mais aquele modelo naquela cor ― e numa camisa também preta, esgargalada, que comecei a namorar na Osklen do Chiado, mas que só vim a comprar numa passagem fugaz por Salvador. Faltou-me a coragem para esborratar os olhos de negro ― à la Billie Joe Armstrong, vocalista do Green Day, ou à la Brian Molko, vocalista dos Placebo ― para ficar com o visual completo de um vocalista punk-glam-rock, mas acho que a barba de dois dias foi suficiente para que, a cada esquina e perante o olhar cúmplice da minha acompanhante, fosse interpelado por tipos diferentes que, quase em surdina, me perguntavam se queria “hax” (haxixe/maconha). Há coisas que não mudam, pensei. Hoje, como ontem, até um “menino da mamã” pode fingir-se “bad boy” por uma noite. Acabámos a noite a conversar muito, sentados numa mesa posta na calçada, às vezes alheios, às vezes atentos a quem passava. E como é divertido ficar a ver quem passa no Bairro Alto. Tudo isto entre um desfiar de memórias, planos para o futuro próximo, boas gargalhadas, umas garfadas de polvo à galega, duas porções de queijo de cabra panado com compota de morango (uma delícia!) e copos, muitos copos, de sangria branca bem gelada. Afinal, como alguém já disse um dia, a vida também é feita destes pequenos nadas.

Cheguei a casa já de madrugada. Sem sono. Na impossibilidade do “encosta-te a mim”, dei por mim a rever na televisão Charlie e a Fábrica de Chocolate, não por acaso a adaptação de Tim Burton de um clássico que marcou não a minha a infância, mas a de alguém, que nessa mesma noite não teve medo de encarnar o “bad boy” com direito a olho riscado e tudo, e com quem "o que eu vi, estou a partilhar contigo. O que não vivi, hei-de inventar contigo". Enrosquei-me no pouf e deixei-me ficar.

26.7.07

Amanhã


On the floating, shipless, oceans
I did all my best to smile
til your singing eyes and fingers
drew me loving into your eyes.
And you sang "Sail to me, sail to me,
Let me enfold you."
Here I am, here I am
waiting to hold you.

(…)
Here me sing: "Swim to me, swim to me,
Let me enfold you."
Here I am, here I am
waiting to hold you."

(Song to the Siren, por This Mortal Coil, escutar aqui)


As primeiras férias a dois. Como é que se chega até aqui? A pergunta pode parecer óbvia. A resposta, de tão evidente, será talvez desnecessária. Afinal, as coisas simplesmente acontecem. Ponto. Dispensam explicação.

Assim fosse eu dado a aceitar as coisas, mesmo as mais óbvias, de ânimo leve. Minto. Capaz até sou, depende é muito da situação. Basta não estar particularmente interessado na resposta, e ai é garantido que não vou sequer dar-me ao trabalho de fazer a pergunta.

Não é este o caso. Estou é a chegar à conclusão de que, em matéria de emoções, nem tudo precisa de ser dissecado nem visto à lupa para ser compreendido. Às vezes, basta, por mais estranho ou até mesmo difícil que nos possa parecer por falta de hábito, sentir e deixar a vida seguir o seu curso. Até porque ela nos permite, quase sempre, emendar a trajectória e fazer ajustes se for caso disso.

Por isso, resolvi relaxar e permitir-me aproveitar este momento. Sem fazer muitas perguntas. Não por não estar interessado nas respostas, mas por saber que, no seu devido tempo, elas virão. O segredo, parece-me, está em saber esperar.

Tudo estaria bem, não fosse um pequeno, mas enorme, detalhe que faz toda a diferença: não estou nisto sozinho. Há mais alguém. Alguém a quem o meu aparente excesso de segurança pode provocar insegurança. Alguém que pode interpretar as minhas não perguntas e as minhas não respostas não como um sinal de crença, mas sim de profunda descrença.

Apercebo-me, então, que, quando a dois, não dependo mais só de mim. Que não posso mais só contar comigo. Há mais alguém. Alguém que preciso levar em consideração. Alguém que preciso escutar. Consultar.

É que, mais do que apenas ter músicas, filmes, passagens de livros em comum, fazer rir o outro, rir com o outro, rir um com o outro, saber que ele não come carne de porco mas adora sushi, ser capaz de achar com os olhos fechados uma pinta no rosto ou uma marca de nascença no corpo, prever as suas mudanças de humor ou descobrir de que lado da cama gosta de dormir, a construção de uma relação passa por aprender a ter o outro, e as suas necessidades, em atenção.

Eu diria mesmo que só ganhamos, para valer, consciência da importância do outro nas nossas vidas não quando passamos a sonhar (às vezes até acordados) com ele, mas sim a partir do momento em que estamos dispostos a rever as nossas prioridades e as nossas posições ― o que pode até implicar fazer perguntas e dar respostas que, à partida, para nós não seriam fundamentais, não naquele instante pelo menos. E fazemo-lo não por uma questão de cedência ou de anulação a favor do outro, mas, tão-só, porque para ele é importante esse voto de confiança, esse gesto.

E assim se chega, quase sem darmos por isso, ao momento de planear umas férias a dois. Porque foi inevitável. Não, mais uma vez, por se tratar de um teste para saber se eu prefiro a cidade e ele a praia, se eu gosto de colchão duro e ele mole, se eu sou arrumado e ele desarrumado, se eu puxo sempre o autoclismo (descarga) e ele deixa a tampa da sanita (privada) aberta. Isso, por mais irritantes que nos possam parecer na hora, são apenas detalhes tão pequenos de nós dois.

Passar férias juntos não é, ou não deveria ser, um jogo de (in)compatibilidades. Prefiro, de longe, encará-las como mais um passo no aprendizado que é estar a dois.

16.7.07

A queda

As Asas do Desejo, Wim Wenders

Quantos sonhos em sonhos acordo aterrado
A terrores noturnos minha alma se leva

É um insight soturno é o futuro passando

Na velocidade terrível da queda

Na velocidade terrível da queda

Ante o colapso final
a vertigem
próximo ao chão a penúltima descoberta
Que a lógica violenta das cores tinge

A velocidade terrível da queda

A velocidade terrível da queda

Como cair do céu é tão simples
Queda que a tudo e a todos transforma

Ah! as bombas, a chuva, os anjos e seus loucos

O mundo todo na velocidade terrível da queda

O mundo todo na velocidade terrível da queda

Resvalando em abismos um pôr do sol furioso
Que a sensação de perda ao ver exagera

É o desespero vermelho de um apocalipse luminoso

Ejaculado da velocidade terrível da queda

Ejaculado da velocidade terrível da queda

Diante do medo um sorriso aeróbico
Nas bochechas a caimbra de uma alegria incompleta

Nada como um sorriso burro e paranóico

Para não perceber a velocidade terrível da queda
Para não perceber a velocidade terrível da queda

(A Queda, por Lobão, escutar aqui)



A imagem de Damiel e Cassiel em As Asas do Desejo, de Wim Wenders, os anjos caídos que, um dia, quiseram abdicar do seu pedestal de divindades para rir e chorar como os comuns mortais.

SENTIR.

A vertigem da queda. Trocar o vazio de nada sentir pelo turbilhão louco das emoções. A atracção do que está longe, mas ao alcance da mão. Voltar as costas ao conhecido, ao certo, ao previsível e ao que nos fez feliz, mas já não basta. Mergulhar de cabeça no desconhecido, no incerto, no imprevisível e no que nos poderá fazer sentir vivos.

Como abrir uma porta sem fechar a outra?

É possível a transição entre um mundo e outro?

Onde está a ponte?

A vertigem da queda. Olhar uma última vez o que já passou. Espreitar mais uma vez o que está por vir. Andar no arame. Num equilibro insustentável. A queda é eminente. Trocar as asas por um coração. Abandonar o pedestal seguro dos que tudo vêem e ouvem, mas nada sentem, pelas pernas doloridas dos que não se cansam de errar o caminho na tentativa de acertar.

SENTIR.

11.7.07

A dança da chuva


And I’d give up forever to touch you
’Cause I know that you feel me somehow
You’re the closest to heaven that I’ll ever be
And I don’t wanna go home right now

And all I can taste is this moment
And all I can breathe is your life
And sooner or later it’s over
I just don’t wanna miss you tonight

And I don’t want the world to see me
’Cause I don’t think that they’d understand
When everything’s made to be broken
I just want you to know who I am
(Iris, por Goo Goo Dolls)



Levei uma semana inteira a falar de despedidas. Alguém que já considero um amigo, apesar da distância e de ter entrado na minha vida há pouco tempo, perguntou-me se não teria sido uma forma que eu encontrei, apesar de não ter falado de mim em momento algum, de fechar um ciclo para dar início a um outro. Fiquei a pensar naquilo. Sábias palavras desse meu amigo, que, para mais, é um admirador confesso de Fernando Pessoa e me mandou, tão a propósito, o seguinte trecho:

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia…e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”

Touché. Sem me dar conta disso, acho que parte da minha metamorfose está terminada. Não falta muito para romper o casulo. São metáforas, bem sei, mas eu gosto de falar por metáforas. Fazer o quê.

Há pouco mais de um ano, o meu mundo, ordenado segundo uma lógica que me parecia a certa, sofreu um abanão valente. Por fora, o verniz não chegou a estalar, mas, por dentro, o estrago estava feito e não tinha como ignorá-lo. Pela primeira vez em toda a minha vida, conheci um homem a quem permiti ficar o tempo suficiente junto a mim para me sentir balançado. Desde o início que vi nele um parceiro improvável, mas hoje, a uma distância segura, vejo que houve um sentido na sua passagem fugaz. Ele, mais do que apenas desejo, como outros o demonstraram antes sem que com isso tivessem conseguido a minha atenção, revelou afecto por mim. E foi o afecto, mais do que o desejo, que me fez pensar duas vezes. Como ele percebi que podia haver ternura entre dois homens. Não cedi, mas aprendi a lição.

Abri este blogue para poder falar em voz alta, sem medo de alguém ouvir o que tinha para dizer. Fui ouvido. Escutei. Continuo a ser ouvido. Continuo a escutar. Mas sempre a trilhar o meu próprio caminho. Graças a ele, ao blogue, conheci uma pessoa de carne e osso que preferiu ficar, quiçá para sempre, na minha lembrança como um esboço do que poderia ter sido mas não foi. Durante um mês, um mísero mês, eu, que sempre me dei pela metade, vivi de migalhas. Não cheguei a curvar-me para pedir a sua presença, mas andei tão perto quanto a dignidade e o orgulho feridos o permitiram. Interroguei-me tantas vezes do porquê de estar a passar por tudo aquilo em vão…

Mas não foi em vão. Houve um propósito em tudo aquilo. Quando cheguei aqui, vinha de peito aberto, é certo, mas estava demasiado seguro de mim e do que queria ― a maioria de vocês, que me lê, foi generosa o suficiente para nunca o me atirar à cara. Uma das minhas certezas era a de que, muito dificilmente, me apaixonaria por um homem. A vida, ou que lhe quiserem chamar, encarregou-se de me enviar este homem para provar que estava redondamente enganado. Cai do cavalo, mas levantei-me e sacudi a poeira. Este homem, que me atraiu pela sua conversa e não pelo sexo, disse-me um dia: “arriscas-te a sofrer uma grande desilusão com o primeiro homem por quem te apaixonares”. Acertou, mas esqueceu-se de me avisar que esse homem era ele. Recusei-me, todavia, a dar-lhe o gosto da vitória por inteiro e fiz questão de voltar a pegar nas rédeas do cavalo.

Algum tempo passou. Olhei para trás algumas vezes, mas não cedi à tentação de inverter as minhas prioridades. Mais do que apenas sexo, eu quero cumplicidade. Não é uma escolha óbvia. Para muitos é mesmo uma escolha kamikaze e um ideal romântico. Acontece que eu não sou, nunca fui, um romântico. Sou até muito cínico em matéria de emoções, mas a minha zona mais erógena sempre teve em cima e não em baixo. Não gosto, nunca gostei, de sexo com pessoas descartáveis. Elas podem até ser meros passageiros em trânsito na minha cama, mas que durante essa travessia eu sinta que me estimularam mais do que apenas a libido. É a minha maldição, eu sei. Mas vivo bem com ela.

E foi assim, sem ter planeado, sem ter procurado, que achei. Não é uma decisão fácil nem simples. Mas desde quando é que eu gostei do fácil e do simples? Só sei que, depois de ter lutado um tempo contra, aceitei a ideia de que este novo homem não é uma mera coincidência na minha vida. Tal como os outros antes dele não o foram. Sem eles, eu ter-me-ia arriscado a que este homem passasse por mim sem me aperceber. Porque precisei aprender primeiro, está claro agora para mim, que poderia interessar-me, de verdade, por alguém como ele. Alguém que, mais do que um homem, é uma pessoa que me desafia, que me faz rir, que me comove, que me tira do sério, que se mostra do direito e do avesso, que não tem medo do peso das palavras nem de se mostrar vulnerável. Alguém que me acende o desejo, mas que me inspira muito mais do que só sexo.

Ontem fui dormir com o eco das suas palavras na minha cabeça e lembrei-me de uma música (ver epígrafe) que fez parte da banda sonora do filme City of Angels, com Meg Ryan e Nicolas Cage. É o tipo de música que eu elejo para dançar à chuva. Imaginei-me ali, de braços estendidos, de roupa colada ao corpo, de alma lavada. Não chovia aqui, mas chovia lá, de onde a voz dele me chegou.

6.7.07

A despedida-Parte V

EPÍLOGO
Termino hoje a minha série de estórias curtas. Obrigado a todos os que tiveram a generosidade de as ler e de emitir, de uma forma ou de outra, a sua opinião. Foi importante para mim. Quando me propus escrever sobre a despedida, nas suas várias formas possíveis e colocando-me sempre em diferentes peles, fi-lo sem pretensões literárias maiores, mas foi, assumo, um exercício de estilo. É um tema que provoca desconforto. Comprovei-o através de muitas das vossas reacções. Em momento algum quis ser original, afinal já (quase) tudo foi dito e escrito, mas cada uma delas, mal ou bem, foi sempre contada do meu jeito. É isso que me interessa: contar estórias do meu jeito. Aceito, até porque foi intencional, que, de todas elas, a mais fantasiosa é a primeira, A Maldição. Mas há ali um fundo de verdade. A figura do predador sexual fascina-me e repugna-me. Assim como os anjos negros e os vampiros. A analogia não foi, por isso, mera coincidência.


V
A CULPA

(Trilha sonora: Goodbye my Lover, por James Blunt, escutar aqui)


Não foi fácil convencê-la a arranjar-se para este jantar. Não a levo a mal. No seu lugar, nem sei se teria feito sequer o esforço de vir. Mas ela sempre foi muita mais generosa do que eu. Estou nervoso. Tenho as mãos húmidas do suor. Sinto-a igualmente irrequieta. Apercebo-me que tem estado a evitar encarar-me nos olhos desde que aqui chegámos. Não posso deixar de me recordar do momento, há mais de dez anos, em que, neste mesmo restaurante, a pedi em casamento. Lembro-me que tremia de antecipação e que só não acabei no chão à procura do anel de noivado porque, felizmente, o maître estava atento e salvou-me do embaraço. Foi uma das noites mais felizes da minha vida. Talvez por isso, fiz questão de aqui voltar com ela. Ignoro se terá ideia do que se passa, de que este será, porventura, o nosso último jantar. Enquanto marido e mulher, pelo menos. É claro que deve desconfiar, afinal, que mulher não estranharia não ser procurada na cama há mais de dois meses? Isto para não falar nas desculpas, cada vez mais esfarrapadas, que tenho inventado para justificar as minhas constantes ausências. Vendo bem, agora que penso nisso, há muito que ela deixou de me cobrar seja o que for…Olho para ela. Reparo que não tem mais o frescor de outrora, mas é hoje, sem dúvida, uma mulher bem mais interessante do que era há dez anos. Comovo-me com a visão do seu vestido preto decotado e a forma como este lhe realça a pele cor de azeitona. Conheço cada uma daquelas sardas que lhe descem do pescoço aos seios. Os seus olhos continuam esquivos. Faz tempo que não os desprega da ementa, que, a esta altura, já deve saber de cor. Mas não preciso disso para saber o que lhe vai na alma. Quero que este jantar, apesar do óbvio confrangimento que se abateu entre nós, corra o melhor possível. Que fique, se possível, como uma boa lembrança. Mas esta noite, quando formos para casa, eu não vou subir. Trago na mala do carro algumas mudas de roupa, que ali pus sem ela perceber, para os próximos dias. O resto fica para depois da poeira assentar. Já ensaiei mil vezes o que lhe vou dizer quando estivermos a sós, mas temo ser atraiçoado pela emoção e engasgar-me na hora. Serei eu capaz de lhe fazer ver que ela foi a primeira e a única mulher da minha vida? Que não vi nela uma tábua de salvação, muito menos uma saída de conveniência, mas tão-só alguém, a única mulher nunca é demais dizê-lo, por quem fui capaz de me apaixonar? Que lhe estarei eternamente grato por me ter proporcionado a experiência de ser pai? E ela, será ela capaz de acreditar quando lhe jurar que nos imaginei a envelhecer juntos? Partilhámos tanta coisa e, ainda assim, não consigo prever qual será a sua reacção… Às vezes, quase desejo que ela me agrida, que me insulte. Acho que só assim seria capaz de sentir um pouco menos de culpa e de remorso. Não estou a trocá-la por outra mulher, mas foi nos braços de outro homem que me entreguei por completo como nunca o consegui fazer com ela. Foi essa a minha maior traição. Sei-o bem. Será ela capaz de me perdoar, passada a mágoa? E eu, serei eu capaz de me absolver um dia?

5.7.07

A despedida-Parte IV

The Pillow Book, de Peter Greenaway

IV
A AUSÊNCIA

(Trilha sonora: Against all Odds, por Phil Collins, escutar aqui)


Cinco meses, sete dias e muitas horas, quase todas contadas ao minuto, desde que saíste por aquela porta. Quero que saibas que não espero resposta a esta carta. Há muito que perdi a esperança de te ver entrar de novo por esta mesma porta. Mas continuo a sentir a tua falta. Continuo a não ser capaz de superar a tua ausência. Sei que não suportas a minha carência, a minha falta de amor-próprio ― em parte, acho que foi por isso que me deixastes, sentiste-te sufocado pelo peso do meu amor ―, mas eu não sei ser de outra forma. Não contigo, pelo menos. Não te iludas. É claro que não tenho estado sozinho este tempo todo. Tentei, como me disseste, ou melhor, me ordenaste, seguir com a minha vida. Mas que posso fazer se é a tua boca que quero na minha, se é a tua mão que procuro quando alguém me toca? Pergunto, tantas vezes que já lhe perdi a conta, onde foi que errei…Quando, em que momento, eu não percebi que o meu amor por ti deixou de ser suficientemente grande para nós dois? O meu pudor não me impede de te confessar que, nas alturas em que o teu afastamento se me torna insuportável, saio, desvairado, à tua procura nos lugares que costumávamos frequentar juntos, sempre na esperança de te encontrar. Corro o risco, bem o sei, de te ver nos braços de alguém que não eu…. Mas acho que prefiro isso à ideia de nunca mais te ver. Às vezes, já com o dia quase a romper, fico às voltas na cama e não resisto ao impulso de agarrar no telefone e te ligar. Só queria ouvir a tua voz mais uma vez, mas maldigo a hora em que, do outro lado da linha, poderei escutar outra voz que não a tua … De todas as coisas que deixaste para trás, e que me ajudam a manter viva a tua presença nesta casa, é no jardim que me sinto mais perto de ti. Ainda hoje me surpreendo como, logo tu que nunca tiveste paciência para o prazer não imediato, te empenhaste a fundo, meses a fio, a dar-lhe forma. Estou certo que começou por ser (mais) um capricho teu, mas, no fim, acho que o mexer na terra te deixava feliz e menos tenso. Tenho-me esforçado para o manter tal como o deixaste, mas não possuo a dedicação do fiel jardineiro*. Ainda assim, gostaria que estivesses cá para ver as primeiras tulipas, narcisos e frésias a anunciar a chegada da Primavera. Já te disse que sinto a tua falta? Preciso dizê-lo, já que não me deste tempo para muito mais quando te foste embora. Por isso, quando leres esta carta ― e eu prefiro acreditar que a vais ler e não jogá-la directamente no lixo ―, quero que saibas que continuo aqui, no mesmo lugar onde me abandonaste faz hoje cinco meses, sete dias e muitas horas. Horas que conto ao minuto.

Com amor,

P.

* Referência ao filme O Fiel Jardineiro (The Constant Gardener, no original), do brasileiro Fernando Meirelles, com Ralph Fiennes e Rachel Weisz.

4.7.07

A despedida-Parte III


III
A PARTIDA

(Trilha sonora: Breathe Me*, por Sia, escutar aqui)


Acreditei, ou quis acreditar, que seria capaz de deixar tudo para trás e ir viver um grande amor. A família, os amigos, a carreira, a casa, os livros, o gato, a cidade onde nasci e vivi, e tantas outras coisas que já fazem parte do meu código genético. Cedi ao impulso de me meter num avião para atravessar o Atlântico quando senti que não podia mais adiar a consumação de uma paixão nascida não da convivência diária, mas sim de momentos fugazes roubados à rotina de cada um de nós nos últimos meses. Quando ia ao seu encontro, quase rezei para estar enganado. Teria sido tão mais fácil… Mas, vê-lo, abraçá-lo só veio confirmar o que eu já sabia, afinal, esperei por alguém como ele a minha vida toda. Claro que houve uma estranheza inicial, que tivemos de quebrar aos poucos, mas depressa alargámos a sintonia espiritual que já vinha de antes a uma comunhão maior. Sacrifiquei as minhas férias de Verão para passar um mês inteiro com ele. Não me arrependo. Como poderia eu arrepender-me se fui feliz como nunca antes o fora? Durante esse tempo, pude saborear o seu beijo e mapear o seu corpo de forma a saber onde me encaixar na hora de dormir, mas vivi também a sua vida, fiz dos amigos dele os meus, da sua família a minha, da sua casa a minha. Na verdade, eu tentei. Tentei, mas não consegui. Os dias foram passando e calámos a ansiedade de se estar a aproximar a data da minha partida. Foi uma espécie de pacto tácito que fizemos para não turvar a felicidade dos últimos instantes. Não ousámos falar do futuro. Percebi, desde o primeiro minuto, que a vida dele era ali. Acreditei, ou quis acreditar, que a minha também poderia ser ali se eu me esforçasse. Pedi um milagre de amor. Chegou a hora marcada. A caminho do aeroporto, não trocámos palavra. Deixámo-nos ficar de mãos dadas no banco de trás do táxi, alheios aos olhares de reprovação que o motorista nos lançava através do espelho retrovisor. Tirei sozinho as malas da bagageira do carro. Ele limitou-se a seguir-me até ao check-in. Cabisbaixo. Sempre em silêncio. Quando comecei a vê-lo engolir em seco, temi que, a qualquer momento, rompesse num pranto. Conteve-se. Eu contive-me. Chegámos ao portão de embarque. A última fronteira. Não podíamos mais adiar aquele abraço de despedida. Abraçámo-nos então. Não sei quanto tempo estivemos assim, apertados um contra o outro, com os nossos corações aos pulos, mas pareceu-me uma pequena eternidade. Acho que nem demos pelos outros passageiros, que eram obrigados a desviar-se. Fui eu que o afastei. Fi-lo olhar para mim e prometer-me que não seria um adeus, mas, tão-só, um até breve. Ele acenou-me que sim, mas as lágrimas escorriam-lhe já pelo rosto. Esforçava-se, em vão, para não soluçar. Foi a minha vez de engolir em seco. Desprendi-me da sua mão e fui. Quando me voltei para trás, para o ver uma última vez, estava escrito no seu rosto. Ele sabia, como eu sabia, que não haveria amanhã.

* Fui buscar esta música à sequência final do seriado Six Feet Under (Sete Palmos de Terra em Portugal), a que ainda hoje não consigo assistir sem emoção. Podem ver ou rever aqui.

3.7.07

A despedida-Parte II


II
A LEMBRANÇA

(Trilha sonora: Jesus to a Child, por George Michael, escutar aqui)


Encontro-me sozinho no teu apartamento, que foi a nossa casa por pouco mais de um ano de vida em comum. A tua família concedeu-me o especial favor de me deixar ficar aqui até eu arranjar um outro lugar para morar. Magnânimos como sempre, deixam-me até levar, e disseram-mo com estas exactas palavras, “alguns objectos pessoais teus, desde que, claro, nenhum deles constitua uma alienação do teu património”! Quando ouvi isto, dito logo após o teu funeral, a que tive de assistir na qualidade de “amigo” para salvaguardar as aparências ― como se todos ali não estivessem cansados de saber que éramos muito mais do que amigos, éramos amantes! ―, estive a ponto de perder as estribeiras, mas contive-me. Seja como for, nada disso importa agora que te foste. Olho à minha volta e ainda te vejo sentado na mesa da cozinha, a roer uma maçã verde, enquanto eu cozinho o jantar e tu me contas como foi o teu dia; consigo também, sem esforço algum, sentir o perfume da Aqua di Parma, que ficava a pairar no ar depois de fazeres a barba logo pela manhã. A tua gargalhada sonora continua a encher a casa… parece até que te estou a ouvir rir, pela enésima vez, com as tropelias dos Monty Phyton… Por falar nisso, onde é que andarão esses DVD’s? Não me posso esquecer de os levar, foram um presente meu. Há também a camisola de gola alta em caxemira, que te dei no último Natal… Como eu gostava de te ver com ela, mas tu resistias sempre a vesti-la… Achavas que te dava um ar demasiado emproado, hehehehehehe. Pensei também em levar os vários porta-retratos, que espalhámos pela casa, com fotografias nossas. Imagino que seja a última coisa que eles desejam encontrar aqui quando tomarem posse do imóvel. Gostaria ainda de poder levar comigo outras coisas, pois cada uma dela é um pedaço de ti e da nossa história juntos… Mas, desde que te foste, naquela noite maldita em que estive quase para me meter contigo no carro ― e como me mortifico até hoje por não o ter feito! ―, perdi o ânimo para lutar contra o mundo. Quero chorar, mas já não consigo. Esgotei as minhas lágrimas. A vida dá, a vida tira. Demorei muito a conformar-me, mas, vejo hoje que não são estas coisas que me vão ajudar a manter a tua presença viva. Quando fechar de vez aquela porta, levo comigo algo que jamais alguém me poderá tirar, que é a tua lembrança. E a tua lembrança é como um livro. Um livro que eu pretendo ler e reler muito devagar.

2.7.07

A despedida-Parte I

Anjo Caído, Fábio Góis

PRÓLOGO
Não gosto de despedidas. Mas gosto de escrever sobre elas. Gosto do que trazem à tona. Imaginei cinco estórias curtas para falar de algo que está muito presente nas nossas vidas, mas com o qual nem sempre sabemos lidar da melhor forma. Dizer adeus, seja em que situação for, não é fácil. Nunca é. Para cada uma dessas estórias, que começo hoje a publicar à razão de uma por dia durante toda esta semana, fui buscar uma música. Se puderem, quando as lerem, não deixem de escutar a respectiva trilha sonora. Foi assim que idealizei estes cinco momentos.


I
A MALDIÇÃO

(Trilha sonora: Gabriel, pelos Lamb, escutar aqui)


Conheci o Gabriel numa festa. Até aí nada de novo. Perdi já a conta aos muitos rapazes iguais a ele que seduzi nas orgias regadas a champanhe e a cocaína que insisto em frequentar, apesar de não gostar nem de uma coisa, nem de outra. Mas é o meio onde sempre me movi, qual ave nocturna, e vícios antigos não se perdem de um dia para o outro. Confesso: quando ele se começou a insinuar junto a mim, não lhe prestei grande atenção, mas, ao aperceber-me da luxúria que acendia nos meus amigos, resolvi olhar melhor. Para mais, estava particularmente enfadado naquela noite e o facto de ele me preferir mexeu também com a minha vaidade. Foi assim que o levei dali para fora e o arrastei para a minha cama. Apesar de algo inexperiente, pelo menos assim me pareceu de início, devo reconhecer que me fez o melhor broche dos últimos tempos. Não sei se por isso, se por outra coisa que não me interessa aprofundar, o certo é que, contrariando as minhas regras, o fui deixando ficar. Faz agora uma semana. Dorme. Posso vê-lo daqui. Percorro com os olhos o seu corpo nu, deitado de bruços. Não preciso de esticar a mão para sentir o arrepio da penugem fina que lhe cobre a pele, nem o toque suave da melena loura desgrenhada. A visão de um anjo caído no negrume dos meus lençóis. Quase sinto a ternura a aflorar, mas trato de a enxotar. Não condiz comigo. Eu sou como Lestat* e a minha cama é uma emboscada aos desavisados. Preciso do sopro de juventude deles, dos homens mais ou menos imberbes que atraio até ali, para manter viva a ilusão de que continuo a ser o mais belo e o mais desejável. Sei, porém, que o tempo, implacável, está a correr. Eu já fui o Gabriel. Quase me apetece abaná-lo e gritar-lhe:
- Rapaz, salva-te enquanto podes. Salva-te de ti mesmo… Não queiras acabar os teus dias como eu!
Reprimo a tempo esse súbito ataque de consciência. Quem quero eu enganar? Por vezes, a solidão, que me atormenta há séculos, mete-se no caminho, mas eu não vacilo. Gabriel tem de partir. Tê-lo ao meu lado, por muito que a ideia me pareça tentadora agora, ser-me-ia insuportável quando me desse conta de que os olhares de cobiça eram dirigidos a ele e não mais a mim. Sou como Lestat e Lestat, o mais belo dos belos, está condenado a viver só.

*Personagem de Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice