29.6.07

O espelho


Some people call me the space cowboy, yeah
Some call me the gangster of love
Some people call him Maurice
Cause I speak of the pompitous of love
People talk about me, baby Say I'm doin' you wrong, doin' you wrong don't you worry baby Don't worry
Cause I'm right here, right here, right here, right here at home
I'm a picker
I'm a grinner
I'm a lover
And I'm a sinner
I play my music in the sun
I'm a joker
I'm a smoker
I'm a
midnight toker I get my lovin' on the run ooo ooooo
Joker...The joker...th-the joker ...Joker...The joker...th-the joker

(The Joker, Steve Miller Band)


Quando, por um acaso, o Homem-que-se-empenhou-em-fazer-
da-sua-fantasia-a-realidade se debruçou sobre o espelho, viu o que julgou ser a sua imagem reflectida. Não demorou muito a perceber que do outro lado do espelho tinha, não o seu reflexo invertido, mas o Homem-que-se-recusou-a-viver-a-sua-
realidade-sem-fantasia. Ficaram frente a frente, mas sempre separados pelo espelho. Nenhum deles acreditou na coincidência daquela visão, mas onde o primeiro viu uma possível ironia, o segundo vislumbrou um possível sinal. Ao primeiro interessavam sobretudo as perguntas; ao segundo interessavam mais as respostas. O primeiro quis acreditar. O segundo acreditou. E assim se mantiveram, cada um do seu lado do espelho. Serão eles capazes de encontrar um ponto de convergência entre fantasia e realidade? Um ponto onde aquilo que os une é muito maior do que aquilo que os separa? Qual deles vai quebrar o espelho e mostrar ao outro que fantasia e ilusão não têm, necessariamente, de ser a mesma coisa?


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Dedicado ao:
Homem-que-se-recusou-a-viver-a-sua-realidade-sem-fantasia que, tal como eu, gosta de metáforas e de fábulas, ainda que me julgue demasiado céptico e frio para acreditar nas últimas.
A música de abertura também vai na dedicatória, pois ele mesmo a escolheu um dia como a sua trilha sonora.

27.6.07

A viagem


Another summer day
Has come and gone away

In Paris and Rome

But I wanna go home
Mmmmmmmm

Maybe surrounded by A million people
I
Still feel all alone
I just wanna go home

Oh, I miss you, you know

And I’ve been keeping all the letters that I wrote to you
Each one a line or two

“I’m fine baby, how are you?”
Well I would send them but I know that it’s just not enough
My words were cold and flat

And you deserve more than that

Another aeroplane
Another sunny place

I’m lucky I know

But I wanna go home

Mmmm, I’ve got to go home

Let me go home
I’m just too far from where you are

I wanna come home

And I feel just like I’m living someone else’s life

It’s like I just stepped outside

When everything was going right

And I know just why you could not

Come along with me
'Cause this was not your dream
But you always believed in me

Another winter day has come
And gone away
In even Paris and Rome
And I wanna go home

Let me go home

And I’m surrounded by A million people
I
Still feel all alone
Oh, let me go home

Oh, I miss you, you know

Let me go home
I’ve had my run
Baby,
I’m done
I gotta go home
Let me go home

It will all be all right
I’ll be home tonight

I’m coming back home

(Home, Michael Bublé)


Tom Jobim escreveu e cantou o Samba de Avião, mas eu, com a devida vénia ao mestre, prefiro pensar na minha vida como uma valsa de aviões. Há pouco mais de uma semana, meti-me num para atravessar o Atlântico. Fui contrariado. Logo eu que já tive como meta primeira na vida ser um andarilho. Andar de um lado para o outro. Sem amarras. Sem vínculos.

Já perdi a conta aos aviões que apanhei; às almofadas de todos os tamanhos, feitios e consistências onde encostei a cabeça; aos lençóis, com e sem fios de algodão egípcio, que me cobriram; às toalhas felpudas e menos felpudas em que enxuguei o meu corpo; aos lobbies de hotel onde me deixei ficar, a ver a vida passar; às pessoas que entraram na minha vida para dela saírem logo a seguir; aos cafés sensaborões que bebi para cumprir o ritual da bica (expresso) após as refeições; às piscinas onde brinquei aos ricos; ao dinheiro que gastei por não resistir ao impulso; às horas que perdi e ganhei com a troca dos fusos horários… Uma vida recheada de viagens, de partidas e chegadas. A vida que pedi a Deus. Não me posso queixar, eu sei, mas será que me percebem se vos disser que, não assim tão de repente, tudo isso perdeu parte da sua magia e que me dei conta de que já não é bem disto de que preciso para ser feliz? Chamem-me maluco se quiserem… assim como assim, já me habituei à ideia de não me fazer entender.

Embarquei algo contrariado, já vos disse, mas fui. Afinal, pagam-me para isso. No check in, agradeci o facto de me terem dado um assento afastado dos meus companheiros de viagem. Não estava para conversas. Mandei às urtigas uma das minhas regras de ouro e misturei álcool com altitude. Soube-me bem aquele vinho tinto. Matei as horas do voo a ler, a escrever e a dormir. Nunca tive problemas em dormir a bordo. Cheguei à hora prevista. A adaptação do costume. As conversas de circunstância do costume. Um programa intenso pela frente. Respirei fundo, desliguei o ar condicionado e abri a janela do meu quarto para deixar entrar a brisa morna daquele Inverno com cheiro a Verão. Nas noites e manhãs seguintes, adormeci e acordei com o murmurinhar das ondas contra as rochas. Estava na cidade, mas com o mar aos meus pés.

A viagem força o convívio. Ainda bem. Se assim não fosse, não teria, provavelmente, feito grande esforço para conhecer os meus colegas. Revelaram-se em poucas horas uma agradável surpresa e só não digo que se tornaram amigos porque já ando há tempo suficiente nisto para saber que, nesta vida de itinerância, raros são os afectos que resistem ao embate do regresso à normalidade. Mas foi importante para mim voltar a experimentar este sentimento de camaradagem. Quem já viajou a trabalho, não me deixa mentir: os homens, de uma forma geral, têm tendência, quando em matilha, de se comportar como garanhões no cio. Isso sempre me incomodou. Desta vez, não foi excepção, mas não me senti constrangido ou contrafeito em momento algum. Diverti-me a valer (bebi muito, dancei muito, ri muito e até flirtei um pouco) e apreciei o companheirismo deles. E foi bom para mim poder comprovar algo que nunca quis perder: eu quero relacionar-me com as pessoas, homens ou mulheres, pelo que elas são e não em função de com quem dormem. Não gosto de guetos. Sou avesso a rótulos.

Esgota-se a semana, chega a hora da despedida, trocam-se cartões no aeroporto com os nossos anfitriões. Já passei por isso tantas vezes, mas não custa entrar no faz-de-conta. O mais certo é não tornar a vê-los. Avião de retorno. Desta vez, agradeço o facto de ter ao meu lado, durante o voo, um dos meus companheiros de viagem. Conversamos e rimos. As horas passam mais rápido. Pego num jornal português para saber as últimas e leio um dos cronistas do jornal Diário de Notícias citar, a propósito da Marcha Gay que decorreu na minha ausência, um filósofo francês: “Não confesso que sou gay, porque não há mal nenhum nisso; não proclamo que sou gay, porque não vejo motivo de orgulho; digo que sou gay, simplesmente porque o sou.” Fico a pensar no assunto. Aterro em Lisboa. É uma manhã de Verão, mas ressinto-me da aragem fresca. Cada um vai para o seu lado, mas antes, claro, trocamos números de telefone. Só um de nós insiste na ideia de nos juntarmos uma noite destas para um copo. Dizemos que sim, mas todos sabemos que, não sendo impossível, não será provável. Apanho um táxi. Vejo a cidade espreguiçar-se pela janela.

Entro em casa. Não desfaço as malas, que permanecem fechadas. Passo os olhos pela correspondência amontoada. Como é dia, escureço o quarto para iludir o sono. Aninho-me na cama que é minha. Acordo muitas horas depois. Abro o computador, verifico os e-mails. Detenho-me nas mensagens de duas pessoas recentes na minha vida, mas que já fazem parte dela. Uma delas, a quem fiquei a dever um telefonema, quer saber como tudo correu; diz-me que sentiu a minha falta. A outra, na minha ausência, mostra-me que isto de bem-querer a alguém ― e estou a falar de bem-querer sem necessidade de etiquetas nem de pressupostos ― não pode ficar apenas pelas intenções, há coisas que precisam ser ditas.

O bom do regresso a casa é também isto: a constatação de que certas coisas e que certas pessoas, aquelas que realmente importam e de quem sentimos falta, continuam no lugar de sempre, à nossa espera. I’ve missed you too. É bom estar de volta.

17.6.07

Hiato


I step off the train
I'm walking down your street again and past your door

But you don't live there any more

It's years since you've been there

But now you've disappeared somewhere like outer space

You've found some better place

And I miss you - like the deserts miss the rain

And I miss you - like the deserts miss the rain

Could you be dead?
You always were two steps ahead of everyone

We'd walk behind while you would run

I look up at your house

And I can almost hear you shout down to me

Where I always used to be

And I miss you - like the deserts miss the rain
And I miss you - like the deserts miss the rain

Back on the train
I ask why did I come again?

Can I confess I've been hanging around your old address?

The years have proved to offer nothing since you moved
You're long gone
But I can't move on

And I miss you - like the deserts miss the rain

And I miss you - like the deserts miss the rain

And I miss you

I step off the train
I'm walking down your street again and past your door

But you don't live there any more

It's years since you've been there

But now you've disappeared somewhere like outer space

You've found some better place

And I miss you - like the deserts miss the rain

And I miss you - like the deserts miss the rain

And I miss you
And I miss you - like the deserts miss the rain
And I miss you - like the deserts miss the rain

The deserts miss the rain - like the deserts miss the rain

The deserts miss the rain
like the deserts miss the rain
(Missing, Everything but the Girl)


Foi uma semana atípica.
Feriado pelo meio.
Uma viagem repentina.
O apagar das velas.
Discussões desnecessárias.
O tempo passa e eu não aprendo.
Chuva fora de época.
Planos por água abaixo.
Um recado cifrado num post, que é suposto eu fingir que não li.
Amigos que não se conformam com o meu sumiço.
Um amigo longe da vista, mas não do coração, que me escuta fora de horas.
Alguém que se revela e me desarma aos poucos. Brincar com o fogo. Fugir pela tangente.
Saudades, ainda não sei bem do quê nem de quem.
Um café, uma conversa simpática, alguém que deixou de ter apenas um rosto, para passar a ter também um corpo, uma expressão, uma voz.
Mala por fazer.
Horas dentro de um avião.
Um itinerário a cumprir.
Gente chata.
Gente divertida.
Vontade de ir.
Vontade de ficar.
Coisas que não podem (mais) ser adiadas.
A vida que quis, mas que já não sei se ainda quero.
Será uma semana atípica.


É mais fácil partir quando não se deixa ninguém a quem dizer I miss you.
Já o regresso faz mais sentido quando, à chegada, alguém nos sussurra I miss you.
I miss you, like the deserts miss the rain.

11.6.07

A redenção

Cena de O Beijo da Mulher Aranha, D.R.


It doesn't hurt me.
You want to feel, how it feels?

You want to know, know that it doesn't hurt me?

You want to hear about the deal I'm making.

You, (If I only could, be running up that hill)

You and me (If I only could, be running up that hill)

And if I only could,
Make a deal with God,

Get him to swap our places,

Be running up that road,
Be running up that hill,
Be running up that building.

If I only could

(Running up that Hill, na versão dos
Placebo)


Ele falava sem pausas para respirar, como sempre fazia, mas eu deixara de o ouvir. A minha atenção tinha sido desviada para uma outra mesa, não muito distante da nossa, de onde eles nos lançavam olhares suspeitos. Fiz um esforço, mas não consegui perceber palavra do que diziam. Nem foi preciso. Há muito que me habituei a ler no rosto dos outros o escárnio e o desdém. Não tive dúvidas, nós éramos o alvo dos seus risos enojados.

Não sei o que me enfureceu mais: se o comportamento daqueles palhaços de merda, se o facto de ele fingir que não era nada consigo. Mantinha-se, aparentemente, compenetrado no seu monólogo e não evidenciava o menor sinal de perturbação ou constrangimento. Tentei detectar na sua expressão, por mais leve que fosse, alguma crispação. Nada. Permanecia impávido. Escusado será dizer que tal constatação ainda me deixou mais irado. Tive de me conter para não ser bruto. Apeteceu-me mandar-lhe um berro, agarrá-lo por um braço e arrastá-lo para bem longe dali, onde ele não pudesse mais me envergonhar. Não o fiz. Não por falta de vontade, mas porque não queria piorar as coisas.

Custar-lhe-ia assim tanto comportar-se como um homem normal? Cansei-me de lhe pedir para ser mais discreto, pelo menos quando está comigo em lugares públicos, mas ele arranja sempre maneira de não me dar ouvidos. Agora mesmo, olho para ele e o que vejo? Um louro demasiado artificial nos cabelos, sobrancelhas depiladas, uma camisa colada ao corpo e os pulsos cheios de fitas e pulseiras de couro. Acho que ele faz de propósito. Acho não, tenho a certeza. Ao contrário de mim, que cedo aprendi a fazer-me respeitar à força da pancada, ele, incapaz de disfarçar, decidiu mostrar-se ao mundo como o mundo o quer ver. É o maricas, a aberração que desejam? Então tomem lá os trinados em falsete, as poses fatais e o revirar de olhos decalcados de uma diva do cinema mudo…

Sempre o conheci assim. Já o vi, ao longo dos últimos anos, passar pelas piores humilhações, ser insultado na rua e até agredido, mas ele nunca mudou uma vírgula. Sou forçado a dar a mão à palmatória. Não deixa de ser uma forma de coragem. Seja como for, naquele preciso instante, estava fora de mim e quando isso acontece sou incapaz de pensar com clareza. Nisto, ele levantou-se de repente. Deve ter-me perguntado qualquer coisa a que eu respondi só por responder. Só quando ele se encaminhou para o balcão da esplanada, percebi que a situação tinha escapado ao meu controlo. Ainda tentei impedi-lo, mas não fui a tempo.

Os homens da outra mesa, três, todos nos seus vinte e muitos, interromperam por instantes a chacota. Não devem ter previsto que ele, logo ele, tivesse o desplante de passar quase rente à mesa deles, com um ligeiro, mas inequívoco, gingado de ancas. Estava a provocá-los. Não só ele se dera conta do ocorrido, como estava agora a dar-lhes o troco. Do seu jeito meio torto, mas estava. Debaixo da sua aparência frágil escondia-se um homem sofrido que, quando acoado, sabia mostrar-se corajoso. Quantas vezes, na boate onde ele trabalhava como travesti, enfrentou machões com o dobro da sua força… Infelizmente, não era aquela bravata que os iria calar. Hesitei. Fiquei sem saber se me deveria ou não antecipar.

Ele fez o pedido no balcão e voltou com duas bebidas num tabuleiro. Passada a surpresa inicial, haviam retomado a galhofa. Um deles, para gáudio dos outros dois, resolveu lançar um “Ui, ui” quando ele se preparava para passar de novo junto à mesa. Por momentos, pensei que ele fosse parar e despejar as bebidas nas fuças dos cabrões. Pus-me alerta. Mas foi então que um deles estendeu a perna. Sem que tivesse tempo de lhe acudir, vi-o cair desamparado no chão. Estatelou-se aos pés da mesa, entre os cacos dos copos partidos. As poucas pessoas que se encontravam na esplanada àquela hora levantaram os olhos do que estavam a fazer. Por alguns segundos, ninguém se mexeu; ninguém pronunciou um “ai”. Até que o ar foi cortado por uma gargalhada que jamais vou esquecer por muitos anos que viva. Ele permanecia prostrado no solo. Cego pela fúria, não o ajudei a levantar-se. Fui direito ao que acabara de se rir e, antes de lhe dar sequer tempo para reagir, enfiei-lhe um valente pontapé no peito, que o atirou a ele e à cadeira ao chão.

Não me recordo muito bem do que se seguiu. Como sempre acontece quando me envolvo numa rixa, solto a fera enjaulada que há em mim e passo a agir por puro instinto. Devo ter batido bastante, mas, a avaliar pelo estado em que ficou a minha cara, é bem possível que tenha apanhado muito mais. Afinal, eles eram três e eu apenas um. Aliás, poderíamos termo-nos morto ali que ninguém levantou um dedo para apartar a briga. No final, só me lembro dele a puxar-me por um braço. Como um cão ferido numa luta, que perde o olfacto e se vira ao próprio dono, também eu não o reconheci de imediato e quase lhe acertei um soco. Apenas então o dono do café, visivelmente transtornado, apareceu aos gritos, ordenando que nos fossemos todos embora, caso contrário chamaria a polícia! Estremeci de raiva, quis revidar, mas sentia já o sangue a escorrer-me pela cara. Tentei falar, mas tinha a boca dormente e empapada. Combalido, permiti que ele me arrastasse dali para fora.

A sua casa não ficava muito longe. Entrei no prédio decrépito apoiado nele. Tinha a cabeça a andar à roda. Quando subíamos o último lance de degraus, cruzámo-nos com uma velhota, que só faltou benzer-se. Ele encostou-me à parede para poder meter a chave à porta. Entrámos. O apartamento cheirava a bafio, mas senti-me em casa. Levou-me para o quarto, onde me atirei para cima da cama, que continuava desfeita.

Não sei quanto tempo demorou até voltar com uma bacia de água, alguns esparadrapos e uma malinha de primeiros socorros. Como uma marioneta sem vontade própria, deixei que ele me sentasse na ponta da cama. Sem proferir uma palavra, começou a lavar-me o rosto. Sentia dor, mas o que me angustiava era o nó que se começava a formar na minha garganta. Desabei num pranto homérico. Revi-me, há muitos anos, naquele mesmo quarto, à beira daquela mesma cama. Nessa noite o meu pai havia-me enxotado de casa, não sem antes deixar bem claro que eu tinha morrido para aquela família. Sem tecto e sem dinheiro, enfiei-me no primeiro bar de panascas que encontrei. Foi ali que o vi em palco pela primeira vez. Envolto num imenso buá fuchsia, com uns sapatos de plataforma que mais pareciam andas e uma maquilhagem pesada. Fazia playback, mas nem quis saber quem imitava. Estava mais interessado em quem pudesse pagar-me um copo. Estava também disposto a vender-me por pouco. Só não queria passar uma noite ao relento como um viralata.

Já muito bebido, estava prestes a sair com um tipo cujas feições varri da minha memória quando ele, de cara lavada e já sem as roupas de mulher, me agarrou por um braço. Esbracejei, armei-me em rufia e quis bater-lhe. Ele não se assustou. Enfrentou-me e fez-me cair em mim. Ofereceu-me guarida na sua casa. Ainda hoje não sei por que o fez. Talvez as nossas estórias não sejam assim tão diferentes. Só sei que naquela noite pude tomar um banho, matar a fome e vestir uma roupa lavada. Perdi toda a empáfia, parecia um coelho assustado. Quando ele me apontou o futon na sala e fechou-se no quarto para dormir, fiquei perdido. Achei que fazia parte do jogo. Despi-me por completo e fui até junto da sua cama ― aquela mesma cama onde me encontro agora. Ele fez-me perceber que não queria nada em troca e obrigou-me a voltar para o futon.

Paro de chorar. Ali está ele. Como naquela madrugada, cuida de mim sem pedir nada em troca. Agarro-lhe na mão que faz os últimos curativos no meu rosto. Ele murmura qualquer coisa imperceptível e afasta, sem gestos bruscos, a minha mão da sua. Como ele me conhece bem. Durante todos estes anos, ele foi sempre o meu porto seguro. Deu-me dinheiro, ajudou-me a arranjar o primeiro emprego, foi o meu pai, a minha mãe, o meu irmão sempre que precisei. Ele amava-me em silêncio, há muito que o sabia, mas deu-me sempre amor e carinho sem nunca exigir nada ou mostrar ressentimento. Eu acomodei-me a essa troca desigual. Quantas vezes, não senti prazer em esfregar-lhe na cara que preferia outro tipo de homens, mais másculos, e que abominava o seu jeito efeminado. Ele, pelo contrário, nunca me condenou ou julgou.

Reparo que na sua camisa há uma mancha enorme de sangue ainda fresco. Obrigo-o a despi-la. Revela um pudor inesperado. Dou-me conta que ele já me viu nu vezes sem conta, mas que eu nunca o vi sem roupa… A custo, consigo libertá-lo. Tem vários cortes pouco profundos no peito e nos braços, feitos pelos cacos de vidro. É a minha vez de lhe lavar as feridas. Reparo que ele estremece sempre que lhe passo o pano. Vê-lo assim tão desamparo só me faz aumentar a ansiedade. Tenho o rosto totalmente dorido, mas ainda assim, num ímpeto, tento beijá-lo à traição. Ele afasta-me. Não me encara. Todo ele treme. Quero dizer-lhe que o amo, mas as palavras não saem. Quando quase consigo, ele tapa-me a boca e obriga-me a calar. Tem razão. Não tenho direito de o dizer. Mas quero fazê-lo. Empurro a bacia, os panos ensanguentados e tudo o resto. A muito custo, dispo-me. Ele continua sem ser capaz de me olhar. Mas desta vez, quando me debruço sobre ele e me deito ao seu lado, não me afasta. É chegada a hora de lhe dar um pouco do muito que sempre recebi dele. Sem piedade. Com muito amor.

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Inspirei-me no filme O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco. A banda sonora, essa surgiu numa madrugada sem sono, perdido no Fox, em que revi o episódio de abertura da quarta temporada de O.C. Uma música antiga, revisitada pelos Placebo. Tem tudo a ver.

8.6.07

O postal


So unimpressed, but so in awe
Such a saint, but such a whore
So self-aware, so full of shit
So indecisive, so adamant
I'm contemplating, thinkin' about thinkin'
It's overrated, just get another drink and
Watch me come undone
They're selling razor blades and mirrors in the street
I pray when I'm coming down, you'll be asleep
If I ever hurt you, your revenge will be so sweet
Because I'm scum, and I'm your son

I come undone
I come undone

So rock 'n' roll, so corporate suit
So damn ugly, so damn cute
So well-trained, so animal
So need your love, so fuck you all
I'm not scared of dying, I just don't want to
If I stop lying, I'll just disappoint you

(Come Undone, Robbie Williams)


Deve ter sido do calor e da aproximação do tempo que insisto em associar às férias grandes, pois estou com uma vontade enorme de pegar nas minhas coisas e mudar de ares. Acrescento que viajo regularmente a trabalho, mas, desta feita, quero mesmo é partir como qualquer comum mortal, sem agenda a cumprir nem colegas a tiracolo. E como sou de venetas, resolvi que me está a apetecer voltar a um lugar onde, tenho essa sensação, ficou alguma coisa por viver.

Permitam-me que recapitule.

Os primeiros dias de Verão do novo milénio coincidiram com a minha primeira vez em Mykonos, a mais hedonista das ilhas gregas. Cheguei ali atraído pela beleza agreste da sua paisagem, um pano de fundo perfeito para as casas caiadas de branco, os caramanchões de buganvílias e o azul-piscina sobre o mar. Sabia, como não, que Mykonos era há muito um ponto de escala obrigatória para gays de todo o mundo. O facto não me era então totalmente indiferente, mas não foi, certamente, isso que guiou os meus passos até lá ― vai ver a minha voz interior, que agora não se cansa de me encher os ouvidos, na altura ou falava muito baixo ou falava em grego e eu não a percebia…

Viajava acompanhado de um amigo, praticamente da mesma idade e com um tipo físico idêntico, que ora passou por meu irmão, ora por namorado. Nunca houve o menor constrangimento entre nós a esse respeito, pois estava tudo muito claro. Ele gostava de mulheres e eu também. Aliás, e porque não tínhamos preconceitos a esse nível, nem sequer levámos a mal quando um casal gay norte-americano, mais velhos do que nós e com quem acabámos por falar várias vezes durante a estada na ilha, tentou de todas as maneiras averiguar, e nem sempre de forma muito discreta, qual era a nossa ligação... Acho que a ideia de um ménage à trois ou à quatre lhes passou pela cabeça, mas nós não estávamos para ai virados. Rimos muito, claro.

Para quem não conhece Mykonos, e dela tem apenas a visão de uma espécie de “ilha do deboche”, digo-vos que estão redondamente enganados. Melhor, até nem estão, porque Mykonos também é, na realidade, uma ilha onde reina o deboche, mas confiná-la a esse papel é, no mínimo, pobreza de espírito. Devo confessar que, regra geral, sou avesso a lugares massificados e muito cheios de forasteiros, mas sei apreciar quando me deparo com um modelo que, dentro daquilo a que se propõe, resulta em cheio: é que, ali, excesso de gente é sinónimo de pessoas bonitas de todos os credos e opções; e turismo de massas implica ter dificuldade em escolher um restaurante ou um bar não por serem todos maus, mas por serem quase todos muito apetecíveis. Por outro lado, não faltam, garanto-vos, recantos e lugares isolados para quem assim o entender ― já para não falar nos pequenos hotéis de charme fantásticos, cada vez em maior número, com tudo de bom que o dinheiro ainda pode comprar.

Não nego, porém, que uma das grandes atracções de Mykonos é, precisamente, o seu clima de farra, a que os gays, e não só, emprestam um colorido muito especial. À noite, há ruas da vila principal da ilha, repletas de bares, onde quase não se consegue passar, tal é a quantidade de gente. De dia, quem quer animação, só tem de rumar à Super Paradise Beach (na foto acima), a praia mais concorrida e uma das mais democráticas do mundo. Se no início era apenas frequentada por uma comunidade gay, que ali procurava privacidade para os seus encontros e para a prática de nudismo, logo a moda pegou de tal forma que a esses mesmos gays se juntaram famílias com e sem crianças, jovens casais em lua-de-mel, grupos de amigos e naturistas que parecem ter parado nos anos 60. Pode parecer um cocktail explosivo, mas a graça está ai mesmo, pois respira-se um ambiente muito liberal. Basta que cada um escolha o canto da praia que mais tem a ver consigo. Depois é só ficar na mais completa paz, a desfrutar de um mar absolutamente cristalino e de um doce descanso à sombra de palhotas que se alugam ao dia. A partir das cinco da tarde, a festa corre solta nos bares de apoio e pode durar até às tantas da manhã.

Quase que ainda tenho na boca o sabor dos frappés, uma espécie de granizado de café tipicamente grego, com que matava a sede. Isso e uma música que, pelo contrário, me atormenta até hoje (It feels so good , da Sonique), pois na altura estava na berra e eu passei , sempre que a escuto, a associá-la a Mykonos.

Tenho curiosidade em voltar ali não por achar que não me diverti o suficiente, mas para ver até que ponto a minha forma de estar agora na vida, e de viver a minha sexualidade, alterou ou não a minha percepção. Não é a ideia de engate (pegação) que me move, até porque para isso não precisaria de ir até Mykonos, mas sim a possibilidade de estar num lugar a céu aberto, com mar, boa comida, e não fechado num gueto, onde cada um explora as suas escolhas sem se ralar com o que o vizinho do lado está a fazer. Pode parecer uma coisa (demasiado) simples para a maioria de vocês, mas para mim (ainda) não é.

4.6.07

Sim, estou a ouvir...


Laughing with your pretty mouth
[Andrea] Laughing with your broken eyes

[Bono] Laughing with your lover’s tongue

[Both] In a lullaby

Where do you go when you’re lonely?
Where do you go when you’re blue?

Where do you go when you’re lonely ?
I’ll follow you...

(When the stars go blue, The Corrs & Bono)


Vou deixar as metáforas e os contos de lado por uns tempos. Hoje estou aqui para jogar conversa fora. Sim, este é, assumidamente, um texto descartável. Que se lê (ou não) e deita no lixo. Não vem daí mal nenhum ao mundo.

Aliás, se eu fosse um gajo realmente esperto, assumia com mais naturalidade o meu lado fútil e deixava-me de tretas. Tinha-me poupado, por exemplo, a uma chatice monumental na passada sexta-feira. Como vem sendo hábito, fui ao cinema. Hesitei entre dois filmes, mas acabei por me decidir por Still Life- Natureza Morta, pois imaginei que estivesse prestes a sair de cartaz. Tinha visto a apresentação, lido uma ou outra coisa a respeito e fiei-me na minha boa experiência com cineastas chineses da nova vaga ― foi este mesmo espírito curioso que me levou, anos atrás, a descobrir nomes hoje consagrados como o realizador Zhang Yimou (preferia a simplicidade de um Trigo Vermelho ou Ju Dou às tropelias virtuais de agora, mas enfim…) e a encantar-me com a beleza da então ainda desconhecida Gong Li.

Asneira da grossa. O filme foi penoso do princípio ao fim. Para me redimir, castiguei-me nessa mesma noite ― sim, porque há muito que deixei de sair para a night à sexta, agora só vou arrastado; prefiro outros dias da semana para sair ― e decidi ver A Ilha ― esse mesmo que estão a pensar, com os perfeitinhos Ewan McGregor e Scarlett Johansson ―, que passava na TV Cabo. Não gasto dinheiro para ver este tipo de filmes, mas se passa numa televisão perto de mim ― e não tenho nada melhor para fazer, como era o caso ―, podem apostar que me pespego ao ecrã. À partida, a ideia até não é má, mas não tardei a constatar o óbvio: enredo inverosímil, efeitos especiais a mais e planos demorados, bem demorados, nos dois bonecos. Okay, aquelas carinhas larocas não ofendem a vista.

Devo dizer que Ewan McGregor, que prefiro recordar em filmes como Trainspotting, Moulin Rouge ou Big Fish, não é bem my cup of tea… Em A Ilha, facto raro, o rapaz não baixa as calças uma única vez. Não, não estou a ser mau, ele é que gosta de apregoar que não se importa nada de tirar a roupa no grande ecrã (suponho que na intimidade também não se faça rogado). Quem já teve a oportunidade de conferir o dote do escocês (só para citar os mais óbvios: Young Adam ou The Pillow Book), percebe de onde lhe vem tão grande à-vontade.

Mais uma razão para tirar o chapéu ao Enrique – esse mesmo, o Iglesias, aquele bonitinho mas com voz de cachorro desmamado. Li, não sei onde ― até sei, mas tenho vergonha de o dizer… ―, que o rapaz voltou a insistir recentemente que, passo a citar, “Se pudesse, mudava o meu pénis, porque é muito pequeno”. Se é ou não propaganda enganosa, não sei ― também convinha saber o que ele entende por “muito pequeno”, não vá eu e mais alguns largos milhões de homens andarmos enganados este tempo todo! ―, mas é preciso ter cojones para o repetir num mundo onde ainda impera a lei da fita métrica e a máxima “o meu é maior do que o teu”. A ser verdade, o rapaz deve saber, pelo menos, o que faz com o pouco que tem, pois da boca da Kournikova se sai um “ai”, nunca é para recriminá-lo…

Bom, já que comecei, perdido por cem, perdido por mil. Numa outra revista, lá está George Michael ― garanto-vos que não é quando vou cortar o cabelo que leio estas coisas; quem não percebeu a piada, que procure um post antigo onde apresento o Rui; acrescento apenas que o Rui não só se ajeita bem com a tesoura, como também tem umas mãos de fada e sabe fazer umas excelentes massagens no couro cabeludo; está-me a sair melhor do que a encomenda! Não fui ao concerto no mês passado, mas já sei que deixou a comunidade gay aqui do pedaço em êxtase. Pessoalmente, acho que o Jorge Miguel já teve melhor ar, mas com a vida que o rapaz leva, não admira. Última pérola do cantor: “O mundo seria um lugar melhor se mais pessoas fumassem haxixe”. Até é capaz de ter razão, mas eu tenho cá as minhas sérias dúvidas a avaliar pelas broncas que ele tem armado nos últimos tempos…

Parece que na Polónia só agora deram pelos Teletubbies. Querem suspender a série infantil porque andam muito desconfiados do que possa estar a fazer à cabecinha das crianças polacas (polonesas). Tudo isto porque o Tinky Winky resolveu aparecer de malinha encarnada na mão num dos episódios... Será que na Polónia ainda não ouviram falar em metrossexuais e não sabem que o roxo e o encarnado até estão na moda? Cá para mim, os produtores da série, em vez de andarem a passar mensagens encapotadas, deviam logo era escancarar que o bicho é bicha e ficava o caso arrumado. Com a febre do politicamente correcto, até os polacos da vida iam engolir em seco e “aplaudir” o carácter didáctico da iniciativa.

E se lhes faltarem ideias para fazer o Tinky Winky sair do armário em grande estilo, é só esperar pelo próximo álbum da Kylie Minogue. O produtor da cantora, Calvin Harris, anda a prometer o maior " tema gay pop" da história, pois, segundo ele, "Essa canção vai soar como se 500 homens tirassem a camiseta e mostrassem os seus corpos enquanto dançam. É sexy e erótico. E por isso será um grande tema do gay pop". Ao menos assim, o Tinky Winky ficaria mal falado, mas teria algum proveito. Porque, convenhamos, andar a rodar bolsinha por ai não está com nada.

Acho que já me enxovalhei o suficiente por hoje.