Cena de O Beijo da Mulher Aranha, D.R.
It doesn't hurt me.
You want to feel, how it feels?
You want to know, know that it doesn't hurt me?
You want to hear about the deal I'm making.
You, (If I only could, be running up that hill)
You and me (If I only could, be running up that hill)
And if I only could,
Make a deal with God,
Get him to swap our places,
Be running up that road, Be running up that hill,
Be running up that building.
If I only could
(Running up that Hill, na versão dos Placebo)
Ele falava sem pausas para respirar, como sempre fazia, mas eu deixara de o ouvir. A minha atenção tinha sido desviada para uma outra mesa, não muito distante da nossa, de onde eles nos lançavam olhares suspeitos. Fiz um esforço, mas não consegui perceber palavra do que diziam. Nem foi preciso. Há muito que me habituei a ler no rosto dos outros o escárnio e o desdém. Não tive dúvidas, nós éramos o alvo dos seus risos enojados.
Não sei o que me enfureceu mais: se o comportamento daqueles palhaços de merda, se o facto de ele fingir que não era nada consigo. Mantinha-se, aparentemente, compenetrado no seu monólogo e não evidenciava o menor sinal de perturbação ou constrangimento. Tentei detectar na sua expressão, por mais leve que fosse, alguma crispação. Nada. Permanecia impávido. Escusado será dizer que tal constatação ainda me deixou mais irado. Tive de me conter para não ser bruto. Apeteceu-me mandar-lhe um berro, agarrá-lo por um braço e arrastá-lo para bem longe dali, onde ele não pudesse mais me envergonhar. Não o fiz. Não por falta de vontade, mas porque não queria piorar as coisas.
Custar-lhe-ia assim tanto comportar-se como um homem normal? Cansei-me de lhe pedir para ser mais discreto, pelo menos quando está comigo em lugares públicos, mas ele arranja sempre maneira de não me dar ouvidos. Agora mesmo, olho para ele e o que vejo? Um louro demasiado artificial nos cabelos, sobrancelhas depiladas, uma camisa colada ao corpo e os pulsos cheios de fitas e pulseiras de couro. Acho que ele faz de propósito. Acho não, tenho a certeza. Ao contrário de mim, que cedo aprendi a fazer-me respeitar à força da pancada, ele, incapaz de disfarçar, decidiu mostrar-se ao mundo como o mundo o quer ver. É o maricas, a aberração que desejam? Então tomem lá os trinados em falsete, as poses fatais e o revirar de olhos decalcados de uma diva do cinema mudo…
Sempre o conheci assim. Já o vi, ao longo dos últimos anos, passar pelas piores humilhações, ser insultado na rua e até agredido, mas ele nunca mudou uma vírgula. Sou forçado a dar a mão à palmatória. Não deixa de ser uma forma de coragem. Seja como for, naquele preciso instante, estava fora de mim e quando isso acontece sou incapaz de pensar com clareza. Nisto, ele levantou-se de repente. Deve ter-me perguntado qualquer coisa a que eu respondi só por responder. Só quando ele se encaminhou para o balcão da esplanada, percebi que a situação tinha escapado ao meu controlo. Ainda tentei impedi-lo, mas não fui a tempo.
Os homens da outra mesa, três, todos nos seus vinte e muitos, interromperam por instantes a chacota. Não devem ter previsto que ele, logo ele, tivesse o desplante de passar quase rente à mesa deles, com um ligeiro, mas inequívoco, gingado de ancas. Estava a provocá-los. Não só ele se dera conta do ocorrido, como estava agora a dar-lhes o troco. Do seu jeito meio torto, mas estava. Debaixo da sua aparência frágil escondia-se um homem sofrido que, quando acoado, sabia mostrar-se corajoso. Quantas vezes, na boate onde ele trabalhava como travesti, enfrentou machões com o dobro da sua força… Infelizmente, não era aquela bravata que os iria calar. Hesitei. Fiquei sem saber se me deveria ou não antecipar.
Ele fez o pedido no balcão e voltou com duas bebidas num tabuleiro. Passada a surpresa inicial, haviam retomado a galhofa. Um deles, para gáudio dos outros dois, resolveu lançar um “Ui, ui” quando ele se preparava para passar de novo junto à mesa. Por momentos, pensei que ele fosse parar e despejar as bebidas nas fuças dos cabrões. Pus-me alerta. Mas foi então que um deles estendeu a perna. Sem que tivesse tempo de lhe acudir, vi-o cair desamparado no chão. Estatelou-se aos pés da mesa, entre os cacos dos copos partidos. As poucas pessoas que se encontravam na esplanada àquela hora levantaram os olhos do que estavam a fazer. Por alguns segundos, ninguém se mexeu; ninguém pronunciou um “ai”. Até que o ar foi cortado por uma gargalhada que jamais vou esquecer por muitos anos que viva. Ele permanecia prostrado no solo. Cego pela fúria, não o ajudei a levantar-se. Fui direito ao que acabara de se rir e, antes de lhe dar sequer tempo para reagir, enfiei-lhe um valente pontapé no peito, que o atirou a ele e à cadeira ao chão.
Não me recordo muito bem do que se seguiu. Como sempre acontece quando me envolvo numa rixa, solto a fera enjaulada que há em mim e passo a agir por puro instinto. Devo ter batido bastante, mas, a avaliar pelo estado em que ficou a minha cara, é bem possível que tenha apanhado muito mais. Afinal, eles eram três e eu apenas um. Aliás, poderíamos termo-nos morto ali que ninguém levantou um dedo para apartar a briga. No final, só me lembro dele a puxar-me por um braço. Como um cão ferido numa luta, que perde o olfacto e se vira ao próprio dono, também eu não o reconheci de imediato e quase lhe acertei um soco. Apenas então o dono do café, visivelmente transtornado, apareceu aos gritos, ordenando que nos fossemos todos embora, caso contrário chamaria a polícia! Estremeci de raiva, quis revidar, mas sentia já o sangue a escorrer-me pela cara. Tentei falar, mas tinha a boca dormente e empapada. Combalido, permiti que ele me arrastasse dali para fora.
A sua casa não ficava muito longe. Entrei no prédio decrépito apoiado nele. Tinha a cabeça a andar à roda. Quando subíamos o último lance de degraus, cruzámo-nos com uma velhota, que só faltou benzer-se. Ele encostou-me à parede para poder meter a chave à porta. Entrámos. O apartamento cheirava a bafio, mas senti-me em casa. Levou-me para o quarto, onde me atirei para cima da cama, que continuava desfeita.
Não sei quanto tempo demorou até voltar com uma bacia de água, alguns esparadrapos e uma malinha de primeiros socorros. Como uma marioneta sem vontade própria, deixei que ele me sentasse na ponta da cama. Sem proferir uma palavra, começou a lavar-me o rosto. Sentia dor, mas o que me angustiava era o nó que se começava a formar na minha garganta. Desabei num pranto homérico. Revi-me, há muitos anos, naquele mesmo quarto, à beira daquela mesma cama. Nessa noite o meu pai havia-me enxotado de casa, não sem antes deixar bem claro que eu tinha morrido para aquela família. Sem tecto e sem dinheiro, enfiei-me no primeiro bar de panascas que encontrei. Foi ali que o vi em palco pela primeira vez. Envolto num imenso buá fuchsia, com uns sapatos de plataforma que mais pareciam andas e uma maquilhagem pesada. Fazia playback, mas nem quis saber quem imitava. Estava mais interessado em quem pudesse pagar-me um copo. Estava também disposto a vender-me por pouco. Só não queria passar uma noite ao relento como um viralata.
Já muito bebido, estava prestes a sair com um tipo cujas feições varri da minha memória quando ele, de cara lavada e já sem as roupas de mulher, me agarrou por um braço. Esbracejei, armei-me em rufia e quis bater-lhe. Ele não se assustou. Enfrentou-me e fez-me cair em mim. Ofereceu-me guarida na sua casa. Ainda hoje não sei por que o fez. Talvez as nossas estórias não sejam assim tão diferentes. Só sei que naquela noite pude tomar um banho, matar a fome e vestir uma roupa lavada. Perdi toda a empáfia, parecia um coelho assustado. Quando ele me apontou o futon na sala e fechou-se no quarto para dormir, fiquei perdido. Achei que fazia parte do jogo. Despi-me por completo e fui até junto da sua cama ― aquela mesma cama onde me encontro agora. Ele fez-me perceber que não queria nada em troca e obrigou-me a voltar para o futon.
Paro de chorar. Ali está ele. Como naquela madrugada, cuida de mim sem pedir nada em troca. Agarro-lhe na mão que faz os últimos curativos no meu rosto. Ele murmura qualquer coisa imperceptível e afasta, sem gestos bruscos, a minha mão da sua. Como ele me conhece bem. Durante todos estes anos, ele foi sempre o meu porto seguro. Deu-me dinheiro, ajudou-me a arranjar o primeiro emprego, foi o meu pai, a minha mãe, o meu irmão sempre que precisei. Ele amava-me em silêncio, há muito que o sabia, mas deu-me sempre amor e carinho sem nunca exigir nada ou mostrar ressentimento. Eu acomodei-me a essa troca desigual. Quantas vezes, não senti prazer em esfregar-lhe na cara que preferia outro tipo de homens, mais másculos, e que abominava o seu jeito efeminado. Ele, pelo contrário, nunca me condenou ou julgou.
Reparo que na sua camisa há uma mancha enorme de sangue ainda fresco. Obrigo-o a despi-la. Revela um pudor inesperado. Dou-me conta que ele já me viu nu vezes sem conta, mas que eu nunca o vi sem roupa… A custo, consigo libertá-lo. Tem vários cortes pouco profundos no peito e nos braços, feitos pelos cacos de vidro. É a minha vez de lhe lavar as feridas. Reparo que ele estremece sempre que lhe passo o pano. Vê-lo assim tão desamparo só me faz aumentar a ansiedade. Tenho o rosto totalmente dorido, mas ainda assim, num ímpeto, tento beijá-lo à traição. Ele afasta-me. Não me encara. Todo ele treme. Quero dizer-lhe que o amo, mas as palavras não saem. Quando quase consigo, ele tapa-me a boca e obriga-me a calar. Tem razão. Não tenho direito de o dizer. Mas quero fazê-lo. Empurro a bacia, os panos ensanguentados e tudo o resto. A muito custo, dispo-me. Ele continua sem ser capaz de me olhar. Mas desta vez, quando me debruço sobre ele e me deito ao seu lado, não me afasta. É chegada a hora de lhe dar um pouco do muito que sempre recebi dele. Sem piedade. Com muito amor.
-----------------------------------------
Inspirei-me no filme O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco. A banda sonora, essa surgiu numa madrugada sem sono, perdido no Fox, em que revi o episódio de abertura da quarta temporada de O.C. Uma música antiga, revisitada pelos Placebo. Tem tudo a ver.