28.9.07

A bolha


Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Dentro da noite veloz

(Vambora, por Adriana Calcanhotto, escutar aqui)


Seis meses de blogue. Quarenta e oito posts em que me predispus ― não sem antes, admito, avaliar até onde queria e deveria expor-me ― a partilhar com vocês que passam aqui ― esporádica ou regularmente, com mais ou menos interacção ― as várias fases por que passei ao longo deste período. Foi um tempo de reflexão, em que me escudei, assumo, no interior da minha concha anónima ― o casulo, se preferirem, uma imagem que já usei antes metaforicamente ―, mas em que nunca me fechei ao mundo e aos que me rodeiam. A minha vida não parou nem ficou suspensa; apenas me permiti repensar e reavaliar algumas prioridades.

Sem drama. Sem crise. Sem culpa.

Por tudo isto, este seria sempre, necessariamente, um momento de balanço para mim. Quis não o acaso, mas alguém que fez por conquistar o seu lugar, que eu recebesse como presente um pequeno livro encadernado a vermelho, onde se pode ler a dourado: Metamorfose. Há gestos que valem por mil palavras ― e este, por certo, foi um deles. Não se trata da obra de Kafka, há muito guardada na minha estante entre os livros que me fizeram companhia ao longo de tantas horas, mas de um exemplar único, com ilustrações escolhidas a dedo e trechos dos vários posts que assinei como Oz desde o primeiro dia. Não há como ficar indiferente a tal manifestação de carinho e interesse.

Não foi a primeira vez que me vi confrontado com a minha escrita, mas agora ― e não tinha como ser de outra forma ― teve um peso diferente. É um percurso coerente, o que não quer dizer que me continue a rever em tudo aquilo que pensei e que escrevi. Aliás, a bem da verdade, se tenho alguma qualidade, ela é certamente a de não ter pruridos em mudar de opinião ou de rever as minhas posições.

Este foi e é um blogue assumidamente escrito e pensado na primeira pessoa, mas sempre tive presente, como já disse antes, até onde queria ir na exposição da minha intimidade. Não vou recuar nesse propósito. Tenho, contudo, claro para mim que, em determinado momento, foi muito importante ouvir (ler) o que os outros tinham a dizer, por isso talvez seja chegada a hora, sem que possam ver nisso a mínima pretensão de servir de modelo ou de exemplo, de deixar o meu testemunho a quem, como eu, sente dificuldade em achar o seu rumo na estrada de tijolos amarelos.

Pela primeira vez estive com um homem. Mas não estive com um homem qualquer. Estive com alguém que, antes de ser meu amante, se tornou meu confidente e amigo. Foi uma escolha minha e dele. Não tem de ser assim, mas para nós fez sentido que assim fosse. É bem possível, admito-o, que não fossem algumas contingências externas à nossa vontade e até poderíamos ter estado juntos mais cedo, mas, seja como for, foi uma espera necessária e até certo ponto imposta por nós.

Não existem fórmulas mágicas. Não existem timings exactos. Não existem homens perfeitos. Se algum mérito há neste meu processo foi o de, precisamente, ter percebido a tempo ― e a que não será alheia também alguma maturidade que os meus trinta e alguns me trouxeram ― que, coincidências e percursos semelhantes à parte, cada caso é único. Logo, por mais válido que seja dar ouvido aos outros, no final cabe-nos sempre a nós assumir as nossas escolhas e traçar os nossos caminhos. Como em tudo o resto na vida, não queiram viver a vossa sexualidade e afectividade à imagem de quem quer que seja.

Que fique entendido: não estou a condenar ninguém. Pelo contrário. Estou é a dizer que há vários caminhos possíveis e mais do que uma oportunidade e todos eles são válidos desde que, a curto, médio ou longo prazo, sirvam para nos tornarmos pessoas mais completas. Para muitos, a minha experiência pecará por tardia e por misturar desejo com afecto, mas, à luz do que sou e do que vivi, ela faz todo o sentido. Talvez por isso, eu não sinta que o meu maior “feito” tenha sido o primeiro beijo, ter ido mais ou menos longe na cama ou ter mais ou menos “pegada” na hora do encosta-na-parede. Isso são tudo coisas que se resolvem, acredite quem ainda não passou por elas, à medida que o desejo e o à-vontade com o vosso parceiro falarem mais alto. A minha maior conquista foi, eu acho, ter conseguido passar por tudo isto sem abdicar de algo que, não sendo fundamental à satisfação dos nossos desejos, torna tudo mais especial quando esta lá. Estou a falar de cumplicidade.

Quem me lê desde o início, sabe que depressa arrumei a questão do sentir desejo por homens, mas que tinha ― e ainda tenho, pois nem tudo se resolve de um dia para o outro ― vários preconceitos em relação à afectividade entre dois homens, que me levantava sérias reticências. Pois a vida ― e um homem, nunca é demais dizê-lo, que desde o primeiro momento nunca me escondeu que para ele a afectividade era tão ou mais importante do que o resto ― tratou de me demonstrar que não há tratado que resista à simplicidade das coisas como elas são.

Durante os últimos dias, tudo conspirou ― sobretudo o (mau) tempo ― para que eu e ele ficássemos “ilhados”. Vivemos numa espécie de bolha, o que poderá parecer, numa primeira leitura, uma provação excessiva para duas pessoas que ainda se estão a conhecer. O facto é que isso nos aproximou e me possibilitou, talvez mais a mim do que a ele (que nunca teve grandes dúvidas a esse respeito), desenvolver uma série de “rotinas” que eu não me via de todo a ter com um outro homem. Assim, mais do que apenas a tensão (química) sexual por nós vivida ― e que é fundamental, sejamos honestos ―, eu vou guardar na memória os momentos em que nos limitámos a dar as mãos, a pousar a cabeça no ombro ou no colo do outro, a dormir enroscados, a partilhar um copo de vinho ou uma cerveja enquanto se fazia o jantar ou em que nos embalámos ao som de músicas que já fazem parte da banda sonora das nossas vidas. E tudo isso era, repito, bem mais improvável para mim de acontecer do que toda a parte física envolvida.

Só mais uma coisa para concluir: façam o que fizerem, façam-no sempre até onde tiverem vontade e de acordo com o vosso ritmo. Não vos garanto ― nem é esse o meu papel ―, mas aposto que, tal como eu, no dia seguinte não vão ter qualquer ressaca moral ou arrependimento. A vida terá seguido o seu curso normal, tudo continuará no mesmo lugar e o vosso olhar não terá mudado. A forma como os outros vos passarão a enxergar até poderá mudar, mas até isso será tão-só, se vocês assim o entenderem, um pormenor e não uma sentença.

Fecho aqui um ciclo. Inicio outro. Uma nova fase em que, por respeito e bem-querer a alguém, vou repescar ao tal livro uma frase minha dita antes, mas que nunca fez tanto sentido como agora:
- Trocar as asas por um coração. Abandonar o pedestal seguro dos que tudo vêem e ouvem, mas nada sentem, pelas pernas doridas dos que não se cansam de errar o caminho na tentativa de acertar.
SENTIR.

10.9.07

Fitas

Querelle, por Andy Warhol

Take 1
Há dias, li na imprensa que Jake Gyllenhaal, que desempenhou o papel de Jack em Brokeback Mountain, estaria a ponderar a hipótese de tornar pública a sua homossexualidade em breve ― assumindo, de uma assentada, o suposto companheiro de há vários anos e a suposta vontade de ambos em adoptarem uma criança. Não foi a primeira vez ― nem será a última, aposto ― que se especulou sobre a sexualidade de Gyllenhaal, pois ele, por mais que seja visto a namorar com mulheres desejáveis como Reese Witherspoon ou Kirsten Dunst, não se livra dos que querem fazer dele ― à força, parece-me ― um porta-estandarte da causa gay.

É-me perfeitamente igual se Gyllenhaal é gay ou não, mas já esta obsessão da sociedade moderna ― muitas vezes mascarada de politicamente correcto, o que torna tudo ainda mais sinistro a meu ver ― não me passa ao lado e só faz aumentar a minha aversão a todos aqueles que não descansam enquanto não está tudo devidamente arrumado e etiquetado.

Serve isto para dizer que, agora que me tenho dedicado mais a pensar no assunto, noto haver, não raras vezes, uma falsa aceitação, ou uma aceitação condicionada se preferirem, entre os que dizem (con)viver bem com a sexualidade alheia ― os que não aceitam nem são para aqui chamados. O facto é que, posso ser eu a estar de má vontade ― acontece ―, mas constato que muitos ― a maioria, eu diria ― dos que se dizem “gay friendly” o são desde que as (suas) conveniências se mantenham, o que implica:

  1. O familiar, amigo ou conhecido que é gay assumir a sua “condição” para que todos saibam com o que contar. Evitam-se assim, dizem, embaraços e constrangimentos de parte a parte.
  2. O familiar, amigo ou conhecido que se assume como gay não deve fazer alarde da sua “condição”, o que equivale a dizer que todos devem saber que ele é gay, mas ele não deve comportar-se ― em público, pelo menos ― como tal. A sua aceitação em festas e convívios só será bem vista ― e até incentivada, afinal, ser moderno implica também, porque não, ter um amigo, colega ou primo gay ― desde que ele seja a excepção à regra ― e a regra é que os gays são espalhafatosos, têm trejeitos femininos e são promíscuos.

Admito que seja cisma minha e que a mesma se deva, em parte ou no todo, ao facto de ter vivido até agora como heterossexual aos olhos dos que me rodeiam. Uma “condição” que me habilita a ouvir os comentários e as piadas que boa parte dos que se dizem “gay friendly” ― a maioria, volto a insistir ― continua a fazer sempre que o amigo, o colega ou até o familiar gay vira as costas ― as mulheres, inconformadas, tendem a soltar um “mal empregado”, ao passo que os homens, os que honram o género, vêem e tratam os outros homens, os que não honram o género, como caricaturas grosseiras.

Talvez por isso, textos como o que circulou há uns tempos na blogosfera, e que tanto entusiasmo causou por nele o autor defender que não há homossexuais ― partindo do argumento, à primeira vista, muito razoável e saudável de que se uma pessoa não diz ter orgulho em ser hetero, também não há motivo algum para uma outra insistir em declarar o seu orgulho gay ―, me deixem de pé atrás. É que fico na dúvida se essa é uma forma efectiva de aceitar os gays, com tudo o que eles possam ter de particular, ou se é apenas uma maneira de dizer “nós aceitamo-vos, mas deixem-se estar quietos nos vossos cantos e não façam barulho. Não dêem nas vistas e finjam que são normais”.

Uma coisa é certa, esta minha forma de estar e de ver as coisas tem-me valido críticas por parte de alguns gays, que não se conformam quando eu digo não sentir a menor urgência em contar seja a quem for das minhas relações mais íntimas que estou a assumir para mim a minha porção gay ou até a dar os primeiros passos num relacionamento com outro homem. Mas eu vou mais longe: se um dia sentir necessidade de o fazer será, tenho a certeza, não pela obrigação moral ou por descargo de consciência, mas, tão só, porque ― tal como Gyllenhaal, a ser verdade o que se disse ― vou ter alguém ao meu lado com quem não me apetecerá viver às escondidas. Fá-lo-ei por mim e sempre a pensar na minha maior comodidade, mas certo de que os outros ― mesmo os que me amam e que eu quero acreditar serem capazes de ultrapassar esse detalhe ― não mais me olharão da mesma forma. Cínico, dirão alguns. Realista, contraponho eu.


Take 2
Por sugestão do Maurice, voltei a uma das minhas salas de cinema de eleição em Lisboa ― o King, mas também está em exibição no Monumental ― para ver Mysterious Skin. Realizado por Gregg Araki, este filme insere-se na corrente que agora se entendeu designar por “new queer cinema”, mas eu, que já provei ser avesso a rótulos, saliento, precisamente, o facto deste apresentar-se, sobretudo, como um óptimo momento de cinema para todos aqueles que, independentemente de orientação sexual, gostam de uma boa estória e ainda não perderam a capacidade de se comover com ela.

Tudo começa com dois miúdos que, aos oito anos, são abusados sexualmente pelo seu treinador de basebol. Para um deles, trata-se, aparentemente, de uma experiência indolor que lhe permite aflorar a sua homossexualidade já então latente, mas vem a descobrir mais tarde ― ao ser violado de novo, dessa feita de forma brutal e traumática ―, que prostituir-se sistemática e inconsequentemente não mais foi do que uma maneira de tentar iludir o vazio deixado por essa sua iniciação sexual precoce. O segundo, o mais tímido, varre da sua memória o que lhe aconteceu, mas, por isso mesmo, é quem fica mais fragilizado, chegando ao ponto de acreditar que foi abduzido por extra-terrestres. O reencontro entre ambos, enquanto jovens adultos, é um momento de grande crueza, mas ao mesmo tempo de uma ternura quase lírica, em que um e outro vão ser obrigados, finalmente, a confrontar-se com o que lhes aconteceu e como tal condicionou as suas existências.

Recomendo vivamente a quem (ainda) não viu. Em alguns momentos, este Mysterious Skin lembrou-me o My Own Private Idaho, de Gus Van Saint.

3.9.07

Tão longe, tão perto*

Cena de As Asas do Desejo, de Wim Wenders


Your wheels are turning but you're upside down
You say when he hits you, you don't mind
Because when he hurts you, you feel alive

(Stay - So Faraway, So Close, por U2, escutar aqui)


Tão longe, tão perto.
Encontram-se a horas desencontradas
Num fuso que é só deles.

Olham-se sem se sentirem.
Tocam-se sem se verem.
Beijam-se sem se tocarem.

Foram as palavras que os uniram
Mas, hoje, é no silêncio e no que calam
Que mais se revelam um ao outro.

Nem sempre falam a mesma língua
Mas entendem-se nos seus múltiplos sentidos
E atiçam-se em jogos de metáforas.

Despem as asas e abandonam os artifícios.
Porque não há memória de um vampiro errante
Capaz de amparar a queda de um anjo caído.

Cansados do seu reflexo
Vislumbram na adoração ao outro
Uma luz para a tão almejada redenção.

Divertem-se a lançar suspeitas ao vento
Mas quem se perde na provação da incerteza
Sempre retorna à razão pela mão do outro.

Tão longe, tão perto.
Por vezes, eles mesmo se crêem
Vítimas na emboscada que urdiram.

Mas fixam-se então no momento
Em que o longe passará a perto.
Já sem a maldição do dia sem noite.

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Dedicado a G.

* Peguei emprestado o título, bem como uma das suas músicas, de uma obra de Wim Wenders que muito admiro, e que vem no seguimento de uma eterna referência para mim: As Asas do Desejo.