14.10.07

O ponto final


So when you hear this autumn song
Clear your heads and get ready to run
So when you hear this autumn song
Remember the best times are yet to come

(AutumnSong, por Maniac Street Preachers, escutar aqui)


Abri aqui muitas janelas, sem nunca fechar a porta.

Fecho-a agora.

Olho uma última vez as coisas que deixo para trás, mas é hora de apagar as luzes.

De sair.

Porque, acredito, “the best times are yet to come”.

Despeço-me dos que ficam ― até qualquer dia.

Mas sei que para muitos será, tão só, um até breve.

Afinal, fecho uma porta aqui, mas abro outra janela acolá.

28.9.07

A bolha


Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Dentro da noite veloz

(Vambora, por Adriana Calcanhotto, escutar aqui)


Seis meses de blogue. Quarenta e oito posts em que me predispus ― não sem antes, admito, avaliar até onde queria e deveria expor-me ― a partilhar com vocês que passam aqui ― esporádica ou regularmente, com mais ou menos interacção ― as várias fases por que passei ao longo deste período. Foi um tempo de reflexão, em que me escudei, assumo, no interior da minha concha anónima ― o casulo, se preferirem, uma imagem que já usei antes metaforicamente ―, mas em que nunca me fechei ao mundo e aos que me rodeiam. A minha vida não parou nem ficou suspensa; apenas me permiti repensar e reavaliar algumas prioridades.

Sem drama. Sem crise. Sem culpa.

Por tudo isto, este seria sempre, necessariamente, um momento de balanço para mim. Quis não o acaso, mas alguém que fez por conquistar o seu lugar, que eu recebesse como presente um pequeno livro encadernado a vermelho, onde se pode ler a dourado: Metamorfose. Há gestos que valem por mil palavras ― e este, por certo, foi um deles. Não se trata da obra de Kafka, há muito guardada na minha estante entre os livros que me fizeram companhia ao longo de tantas horas, mas de um exemplar único, com ilustrações escolhidas a dedo e trechos dos vários posts que assinei como Oz desde o primeiro dia. Não há como ficar indiferente a tal manifestação de carinho e interesse.

Não foi a primeira vez que me vi confrontado com a minha escrita, mas agora ― e não tinha como ser de outra forma ― teve um peso diferente. É um percurso coerente, o que não quer dizer que me continue a rever em tudo aquilo que pensei e que escrevi. Aliás, a bem da verdade, se tenho alguma qualidade, ela é certamente a de não ter pruridos em mudar de opinião ou de rever as minhas posições.

Este foi e é um blogue assumidamente escrito e pensado na primeira pessoa, mas sempre tive presente, como já disse antes, até onde queria ir na exposição da minha intimidade. Não vou recuar nesse propósito. Tenho, contudo, claro para mim que, em determinado momento, foi muito importante ouvir (ler) o que os outros tinham a dizer, por isso talvez seja chegada a hora, sem que possam ver nisso a mínima pretensão de servir de modelo ou de exemplo, de deixar o meu testemunho a quem, como eu, sente dificuldade em achar o seu rumo na estrada de tijolos amarelos.

Pela primeira vez estive com um homem. Mas não estive com um homem qualquer. Estive com alguém que, antes de ser meu amante, se tornou meu confidente e amigo. Foi uma escolha minha e dele. Não tem de ser assim, mas para nós fez sentido que assim fosse. É bem possível, admito-o, que não fossem algumas contingências externas à nossa vontade e até poderíamos ter estado juntos mais cedo, mas, seja como for, foi uma espera necessária e até certo ponto imposta por nós.

Não existem fórmulas mágicas. Não existem timings exactos. Não existem homens perfeitos. Se algum mérito há neste meu processo foi o de, precisamente, ter percebido a tempo ― e a que não será alheia também alguma maturidade que os meus trinta e alguns me trouxeram ― que, coincidências e percursos semelhantes à parte, cada caso é único. Logo, por mais válido que seja dar ouvido aos outros, no final cabe-nos sempre a nós assumir as nossas escolhas e traçar os nossos caminhos. Como em tudo o resto na vida, não queiram viver a vossa sexualidade e afectividade à imagem de quem quer que seja.

Que fique entendido: não estou a condenar ninguém. Pelo contrário. Estou é a dizer que há vários caminhos possíveis e mais do que uma oportunidade e todos eles são válidos desde que, a curto, médio ou longo prazo, sirvam para nos tornarmos pessoas mais completas. Para muitos, a minha experiência pecará por tardia e por misturar desejo com afecto, mas, à luz do que sou e do que vivi, ela faz todo o sentido. Talvez por isso, eu não sinta que o meu maior “feito” tenha sido o primeiro beijo, ter ido mais ou menos longe na cama ou ter mais ou menos “pegada” na hora do encosta-na-parede. Isso são tudo coisas que se resolvem, acredite quem ainda não passou por elas, à medida que o desejo e o à-vontade com o vosso parceiro falarem mais alto. A minha maior conquista foi, eu acho, ter conseguido passar por tudo isto sem abdicar de algo que, não sendo fundamental à satisfação dos nossos desejos, torna tudo mais especial quando esta lá. Estou a falar de cumplicidade.

Quem me lê desde o início, sabe que depressa arrumei a questão do sentir desejo por homens, mas que tinha ― e ainda tenho, pois nem tudo se resolve de um dia para o outro ― vários preconceitos em relação à afectividade entre dois homens, que me levantava sérias reticências. Pois a vida ― e um homem, nunca é demais dizê-lo, que desde o primeiro momento nunca me escondeu que para ele a afectividade era tão ou mais importante do que o resto ― tratou de me demonstrar que não há tratado que resista à simplicidade das coisas como elas são.

Durante os últimos dias, tudo conspirou ― sobretudo o (mau) tempo ― para que eu e ele ficássemos “ilhados”. Vivemos numa espécie de bolha, o que poderá parecer, numa primeira leitura, uma provação excessiva para duas pessoas que ainda se estão a conhecer. O facto é que isso nos aproximou e me possibilitou, talvez mais a mim do que a ele (que nunca teve grandes dúvidas a esse respeito), desenvolver uma série de “rotinas” que eu não me via de todo a ter com um outro homem. Assim, mais do que apenas a tensão (química) sexual por nós vivida ― e que é fundamental, sejamos honestos ―, eu vou guardar na memória os momentos em que nos limitámos a dar as mãos, a pousar a cabeça no ombro ou no colo do outro, a dormir enroscados, a partilhar um copo de vinho ou uma cerveja enquanto se fazia o jantar ou em que nos embalámos ao som de músicas que já fazem parte da banda sonora das nossas vidas. E tudo isso era, repito, bem mais improvável para mim de acontecer do que toda a parte física envolvida.

Só mais uma coisa para concluir: façam o que fizerem, façam-no sempre até onde tiverem vontade e de acordo com o vosso ritmo. Não vos garanto ― nem é esse o meu papel ―, mas aposto que, tal como eu, no dia seguinte não vão ter qualquer ressaca moral ou arrependimento. A vida terá seguido o seu curso normal, tudo continuará no mesmo lugar e o vosso olhar não terá mudado. A forma como os outros vos passarão a enxergar até poderá mudar, mas até isso será tão-só, se vocês assim o entenderem, um pormenor e não uma sentença.

Fecho aqui um ciclo. Inicio outro. Uma nova fase em que, por respeito e bem-querer a alguém, vou repescar ao tal livro uma frase minha dita antes, mas que nunca fez tanto sentido como agora:
- Trocar as asas por um coração. Abandonar o pedestal seguro dos que tudo vêem e ouvem, mas nada sentem, pelas pernas doridas dos que não se cansam de errar o caminho na tentativa de acertar.
SENTIR.

10.9.07

Fitas

Querelle, por Andy Warhol

Take 1
Há dias, li na imprensa que Jake Gyllenhaal, que desempenhou o papel de Jack em Brokeback Mountain, estaria a ponderar a hipótese de tornar pública a sua homossexualidade em breve ― assumindo, de uma assentada, o suposto companheiro de há vários anos e a suposta vontade de ambos em adoptarem uma criança. Não foi a primeira vez ― nem será a última, aposto ― que se especulou sobre a sexualidade de Gyllenhaal, pois ele, por mais que seja visto a namorar com mulheres desejáveis como Reese Witherspoon ou Kirsten Dunst, não se livra dos que querem fazer dele ― à força, parece-me ― um porta-estandarte da causa gay.

É-me perfeitamente igual se Gyllenhaal é gay ou não, mas já esta obsessão da sociedade moderna ― muitas vezes mascarada de politicamente correcto, o que torna tudo ainda mais sinistro a meu ver ― não me passa ao lado e só faz aumentar a minha aversão a todos aqueles que não descansam enquanto não está tudo devidamente arrumado e etiquetado.

Serve isto para dizer que, agora que me tenho dedicado mais a pensar no assunto, noto haver, não raras vezes, uma falsa aceitação, ou uma aceitação condicionada se preferirem, entre os que dizem (con)viver bem com a sexualidade alheia ― os que não aceitam nem são para aqui chamados. O facto é que, posso ser eu a estar de má vontade ― acontece ―, mas constato que muitos ― a maioria, eu diria ― dos que se dizem “gay friendly” o são desde que as (suas) conveniências se mantenham, o que implica:

  1. O familiar, amigo ou conhecido que é gay assumir a sua “condição” para que todos saibam com o que contar. Evitam-se assim, dizem, embaraços e constrangimentos de parte a parte.
  2. O familiar, amigo ou conhecido que se assume como gay não deve fazer alarde da sua “condição”, o que equivale a dizer que todos devem saber que ele é gay, mas ele não deve comportar-se ― em público, pelo menos ― como tal. A sua aceitação em festas e convívios só será bem vista ― e até incentivada, afinal, ser moderno implica também, porque não, ter um amigo, colega ou primo gay ― desde que ele seja a excepção à regra ― e a regra é que os gays são espalhafatosos, têm trejeitos femininos e são promíscuos.

Admito que seja cisma minha e que a mesma se deva, em parte ou no todo, ao facto de ter vivido até agora como heterossexual aos olhos dos que me rodeiam. Uma “condição” que me habilita a ouvir os comentários e as piadas que boa parte dos que se dizem “gay friendly” ― a maioria, volto a insistir ― continua a fazer sempre que o amigo, o colega ou até o familiar gay vira as costas ― as mulheres, inconformadas, tendem a soltar um “mal empregado”, ao passo que os homens, os que honram o género, vêem e tratam os outros homens, os que não honram o género, como caricaturas grosseiras.

Talvez por isso, textos como o que circulou há uns tempos na blogosfera, e que tanto entusiasmo causou por nele o autor defender que não há homossexuais ― partindo do argumento, à primeira vista, muito razoável e saudável de que se uma pessoa não diz ter orgulho em ser hetero, também não há motivo algum para uma outra insistir em declarar o seu orgulho gay ―, me deixem de pé atrás. É que fico na dúvida se essa é uma forma efectiva de aceitar os gays, com tudo o que eles possam ter de particular, ou se é apenas uma maneira de dizer “nós aceitamo-vos, mas deixem-se estar quietos nos vossos cantos e não façam barulho. Não dêem nas vistas e finjam que são normais”.

Uma coisa é certa, esta minha forma de estar e de ver as coisas tem-me valido críticas por parte de alguns gays, que não se conformam quando eu digo não sentir a menor urgência em contar seja a quem for das minhas relações mais íntimas que estou a assumir para mim a minha porção gay ou até a dar os primeiros passos num relacionamento com outro homem. Mas eu vou mais longe: se um dia sentir necessidade de o fazer será, tenho a certeza, não pela obrigação moral ou por descargo de consciência, mas, tão só, porque ― tal como Gyllenhaal, a ser verdade o que se disse ― vou ter alguém ao meu lado com quem não me apetecerá viver às escondidas. Fá-lo-ei por mim e sempre a pensar na minha maior comodidade, mas certo de que os outros ― mesmo os que me amam e que eu quero acreditar serem capazes de ultrapassar esse detalhe ― não mais me olharão da mesma forma. Cínico, dirão alguns. Realista, contraponho eu.


Take 2
Por sugestão do Maurice, voltei a uma das minhas salas de cinema de eleição em Lisboa ― o King, mas também está em exibição no Monumental ― para ver Mysterious Skin. Realizado por Gregg Araki, este filme insere-se na corrente que agora se entendeu designar por “new queer cinema”, mas eu, que já provei ser avesso a rótulos, saliento, precisamente, o facto deste apresentar-se, sobretudo, como um óptimo momento de cinema para todos aqueles que, independentemente de orientação sexual, gostam de uma boa estória e ainda não perderam a capacidade de se comover com ela.

Tudo começa com dois miúdos que, aos oito anos, são abusados sexualmente pelo seu treinador de basebol. Para um deles, trata-se, aparentemente, de uma experiência indolor que lhe permite aflorar a sua homossexualidade já então latente, mas vem a descobrir mais tarde ― ao ser violado de novo, dessa feita de forma brutal e traumática ―, que prostituir-se sistemática e inconsequentemente não mais foi do que uma maneira de tentar iludir o vazio deixado por essa sua iniciação sexual precoce. O segundo, o mais tímido, varre da sua memória o que lhe aconteceu, mas, por isso mesmo, é quem fica mais fragilizado, chegando ao ponto de acreditar que foi abduzido por extra-terrestres. O reencontro entre ambos, enquanto jovens adultos, é um momento de grande crueza, mas ao mesmo tempo de uma ternura quase lírica, em que um e outro vão ser obrigados, finalmente, a confrontar-se com o que lhes aconteceu e como tal condicionou as suas existências.

Recomendo vivamente a quem (ainda) não viu. Em alguns momentos, este Mysterious Skin lembrou-me o My Own Private Idaho, de Gus Van Saint.

3.9.07

Tão longe, tão perto*

Cena de As Asas do Desejo, de Wim Wenders


Your wheels are turning but you're upside down
You say when he hits you, you don't mind
Because when he hurts you, you feel alive

(Stay - So Faraway, So Close, por U2, escutar aqui)


Tão longe, tão perto.
Encontram-se a horas desencontradas
Num fuso que é só deles.

Olham-se sem se sentirem.
Tocam-se sem se verem.
Beijam-se sem se tocarem.

Foram as palavras que os uniram
Mas, hoje, é no silêncio e no que calam
Que mais se revelam um ao outro.

Nem sempre falam a mesma língua
Mas entendem-se nos seus múltiplos sentidos
E atiçam-se em jogos de metáforas.

Despem as asas e abandonam os artifícios.
Porque não há memória de um vampiro errante
Capaz de amparar a queda de um anjo caído.

Cansados do seu reflexo
Vislumbram na adoração ao outro
Uma luz para a tão almejada redenção.

Divertem-se a lançar suspeitas ao vento
Mas quem se perde na provação da incerteza
Sempre retorna à razão pela mão do outro.

Tão longe, tão perto.
Por vezes, eles mesmo se crêem
Vítimas na emboscada que urdiram.

Mas fixam-se então no momento
Em que o longe passará a perto.
Já sem a maldição do dia sem noite.

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Dedicado a G.

* Peguei emprestado o título, bem como uma das suas músicas, de uma obra de Wim Wenders que muito admiro, e que vem no seguimento de uma eterna referência para mim: As Asas do Desejo.

27.8.07

Compasso de espera


I’d sacrifice anything come what might
For the sake of having you near

In spite of a warning voice that comes in the night

And repeats, repeats in my ear

Don’t you know you fool, you never can win
Use your mentality, wake up to reality
But each time I do, just the thought of you

Makes me stop before I begin
cause I’ve got you under my skin
(I’ve Got you Under My Skin, por Bono & Sinatra, escutar aqui)


Amanhece o dia.

Claro. Cristalino.

O sol arrepia.

A água fria espevita.

A pele nua salgada.

Pés descalços na areia.

Flutuar num tempo suspenso.

A vertigem do calor.

O cantar lancinante das cigarras na falésia.

Chega a tarde.

O cheiro a tomate e a manjericão.

A sombra fresca.

A grande árvore projectada como uma sombra chinesa.

A brisa suave que afaga.

As flores incandescentes da buganvília trespassadas pela luz.

A preguiça que se aninha.

A grama cortada de fresco.

Baloiçar numa rede.

O piar das rolas num voo rasante.

Os figos inchados que se deixam colher.

Ver o dia esvair-se num campo de sobreiros e oliveiras.

Duas aldeias entre a serra e o mar.

Cai a noite.

Olhar as estrelas dependuradas.

O céu que estremece num clarão.

Chuva de Verão.

A terra solta o perfume.

Um naufrago à deriva numa cama.

Os sentidos à tona.

À flor da pele.

Na escuridão acende-se o desejo.

Tactear o lençol, às cegas, à tua procura.

Sentir-te perto, embora longe.

Tornar tua a mão que em mim desliza.

Encolher-me para preencher o teu vazio.

Iludir o desejo.

Embalar o corpo cansado.

A mente vagueia.

Desperta.

De vigília.

À espreita.

À espera de ti.

Dedicado a G.

17.8.07

Os estetas


Oh, why you look so sad? Tears are in your eyes
Come on and come to me now.
Don't be ashamed to cry, let me see you through
Cause I've seen the dark side too.
When the night falls on you, you don't know what to do,
Nothing you confess could make me love you less
I'll stand by you, I'll stand by you, won't let nobody hurt you,
I'll stand by you.
So, if you're mad get mad, don't hold it all inside,
Come on and talk to me now.
And hey, what you got to hide? I get angry too
But I'm a lot like you.
When you're standing at the crossroads, don't know which path to choose,
Let me come along, cause even if your wrong
I'll stand by you, I'll stand by you, won't let nobody hurt you,
I'll stand by you.
Take me into your darkest hour, and I'll never desert you.
I'll stand by you.
And when, when the night falls on you baby, you're feeling all alone,
You won't be on your own, I'll stand by you. I'll stand by you
I'll stand by you, won't let nobody hurt you. I'll stand by you
Take me in into your darkest hour and I'll never desert you

I'll stand by you.

(I’ll Stand by You, por The Pretenders, escutar aqui)


Não me apeteceu fazer pendant. A música não tem a ver com post, nem o post combina com a imagem. Estão aqui porque me apeteceu. Tout court. O que não quer dizer que não haja um motivo para essas escolhas terem sido feitas e um nexo de causalidade. A música, elegi-a pela mensagem. Uma mensagem que quis passar. A uma pessoa em particular. A imagem porque é de um filme que gosto. Melhor. É de um filme, O Talentoso Mr. Ripley, que me lembra o Verão, Itália e uma certa forma dandy de estar na vida a que não sou indiferente.

Quanto ao tema deste post, quem leu o anterior vai achar, e não os condeno, que ando a ver televisão a mais. Pois é, o noctívago que há em mim não me deixa ir para a cama cedo como qualquer outro comum mortal. Resultado, entre um ou outro dever, arranjo sempre maneira de espreitar um seriado. Acompanho vários ao mesmo tempo. E nem sempre sigo o fio à meada. É o que acontece com o já citado Brothers & Sisters. Noite dentro, apanho mais um episódio desgarrado da primeira temporada. Não é a continuação do último que vi, mas o bom destes enredos é que não precisamos de muito para entrar na estória. Desta vez, a matriarca do clã Walker (Sally Fields) está com o filho gay na cozinha (Matthew Rhys). Depois de ter ficado viúva e de ter descoberto que foi traída pelo marido durante uma boa parte do casamento, ela está a ressuscitar um talento antigo para a pintura e para a escrita criativa. Pede a opinião do filho sobre um trecho que escreveu e fá-lo porque, segundo ela mesmo confessa, “ele tem maior sensibilidade do que os irmãos” para poder avaliar o seu talento… A réplica do filho ― “ O que tu queres dizer é que sou gay…" ― não surpreende, pois era a resposta óbvia naquele contexto, mas deixou-me, uma vez mais, em estado meditativo: desde quando é que se tornou ponto assente ou legítimo esperar que os gays possuam uma maior sensibilidade artística e um gosto mais apurado?

Admito, se é que ainda não ficou claro para quem habitualmente me lê, que sou, por norma e por feitio, avesso a generalizações. Quero dizer que não me conformo facilmente com essa mania de arrumar tudo e todos no mesmo saco. Mesmo conhecendo muito poucos, estou certo que haverá por ai muito gay sem o menor talento, ou interesse, para escolher e combinar roupa. Mas isso leva-me também a um outro preconceito, que notei existir mesmo na comunidade gay, e que passa por associar essa maior “apetência” ao lado feminino, como se um homem com maior sentido estético fosse, necessariamente, menos viril. Depois, insisto: desde quando é que se tornou, também, ponto assente que gostar de roupa ou de flores, por exemplo, é sobretudo coisa de mulher?

Meço o caso por mim. Gosto de roupa, já gastei mais do que deveria numa ou noutra peça, sou capaz de folhear uma revista de moda, até sei quem é Tom Ford, mas se me perguntarem, assim de rajada, quem é o Dolce e quem é o Gabbana, o mais certo é eu hesitar e falhar a resposta. Da mesma maneira, e sobretudo graças a uma profissão que me possibilitou o acesso a determinados lugares, acabei por desenvolver um certo sentido estético e gosto pelo design de interiores. Talvez por isso, muitos familiares e amigos fiam-se na minha opinião a esse respeito e não se admiram mais por eu sentir necessidade de mudar ciclicamente uma ou outra coisa na decoração da minha casa. O curioso é que eu me retraio muito mais de fazer alarde disso do que eles… Vai ver porque eu sempre acho que se um dia vierem a saber que sou gay vão logo associar uma coisa à outra. Ou seja, o preconceito parte de mim e isso, claro está, irrita-me.

Por outro lado, há ideias que estão de tal forma enraizadas que não adianta de muito sequer colocá-las em causa… Veja-se o caso das mulheres e dos gays. Não há filme ou seriado que não bata na mesma tecla, ou seja, a de que as mulheres não dispensam os gays quando acabam um relacionamento, e lhes dá muito jeito ter por perto um homem que as saiba ouvir e mimar sem segundas intenções; e quando vão comprar roupa, pois parece que os gays batem aos pontos os heteros, homens e mulheres, nessa hora: olham de perto sem sentir a tentação dos primeiros e opinam com a sinceridade que falta muitas vezes às segundas... A minha primeira reacção é franzir o sobrolho a tal redundância grosseira, mas, aqui entre nós, pensando bem, ambas as situações não são assim tão improváveis como isso… E quem nunca se viu numa "armadilha" idêntica que atire a primeira pedra!

Para rematar, continuo sem saber se os gays, de uma forma geral, possuem ou não um maior sentido estético, agora que são, cada vez mais, um alvo a seduzir disso não tenho dúvida. Depois de descobrirem que os casais gays, os chamados DINK (Double Income, No Kids) têm bom poder de compra, as grandes marcas estão apostadas em apelar descaradamente à sua veia hedonista. A mais recente é a campanha da Levi’s 501 (ver aqui), que se deu ao trabalho, e à despesa, de criar para o mercado norte-americano um filme publicitário com duas versões: uma para os meninos que gostam de meninas e outra para os meninos que gostam de meninos. Então e as meninas que gostam de meninas? Bom, pode ser que se lembrem delas quando escolherem um outro modelo de calças... Digo eu... ),

9.8.07

Eu, ele, a mãe dele, a minha mãe...


I pray you learn to trust
Have faith in both of us
And keep room in your hearts for two

(Precious, por Depeche Mode, escutar aqui)


Num destes dias, ou melhor, numa destas noites, dei por mim a assistir no FOX a um episódio desgarrado da primeira temporada de Brothers & Sisters, um seriado (mais um) da ABC. A dada altura, na festa do 60º aniversário da matriarca, interpretada por Sally Fields ― com muita confusão, tensão familiar e gags à mistura, como convém ao enredo ―, as personagens de Calista Flockhart (para quem não se lembra, a eterna Ally McBeall) e de Rob Lowe (para quem não se lembra, antigo “namoradinho” da América até ter sido descoberto num vídeo caseiro a brincar de threesome com uma amiga e um amigo) estão a beber, às escondidas, no roupeiro dela. Entre sapatos e vestidos, ela insiste para o senador republicano contar ao irmão gay dela ― interpretado por Matthew Rhys (para quem não sabe, um actor do País de Gales que se tornou conhecido depois de contracenar com Kathleen Turner, no West End londrino, na peça The Graduate) ― que também tem um irmão gay... Isto porque o rapaz, que se assume sem problemas perante a família e o mundo, não vê com bons olhos a irmã estar a envolver-se com o membro de um partido conhecido pelas suas posições conservadoras em relação aos homossexuais.

Fiquei a pensar no assunto...

Quando ponderei envolver-me pela primeira vez com um homem, na interminável listas de prós e contras que formulei na minha cabeça, uma das coisas a favor era, precisamente, o facto de ele não se assumir como gay e de fazer praticamente vida de casado com uma namorada dos tempos da universidade… Achei que assim não corria dois riscos fundamentais: o de ele querer algo mais sério (e ficar no meu pé caso eu quisesse bater em retirada); e o de não ser do seu interesse, tal como do meu, expor-se. Curioso que, no final, quando os contras venceram os prós e eu decidi não avançar, já nem sequer tinha tanta certeza se aquilo que me parecia ter sido uma vantagem no início ainda o era… Sai com a nítida impressão de aquela bissexualidade mal digerida tinha contribuído, e muito, para o tornar uma pessoa conflituosa e mal resolvida.

Adiante.

O segundo homem por quem me interessei, e quase me apaixonei, sabia há muito ser gay. Não tinha (nem tem, acho eu) a menor dúvida a esse respeito. Chegou a dizer-me que, depois de ter beijado um homem pela primeira vez, nunca mais se conseguiu envolver com uma mulher. Mas vivia (ainda vive, acho eu) no armário. Por motivos familiares, por razões profissionais. Há anos que é assim. Achei normal. Mais. Identifiquei-me com a situação. Afinal, também eu me imaginava a viver do mesmo modo. Em mundos paralelos. Acontece que, no pouco tempo que “convivemos”, me apercebi que nem tudo estava tão bem resolvido na sua cabeça como eu julgava à partida. Depois de anos a viver na sombra, na noite, de vários casos abortados, esse homem, descobri, tornou-se desconfiado, quase desenvolveu uma fobia a possíveis doenças e contágios e refugiou-se na carreira para ter uma desculpa. Uma desculpa para não se envolver.

Adiante.

Entra um terceiro homem na minha vida. Permito-me explorar com ele novas emoções, arriscar diferentes sensações, transpor certos limites. Desde o princípio, torna-se claro para os dois que é muito mais do que sexo o que está em jogo. Mas não é disso que importa falar. Ele vive a sua sexualidade de forma aberta. Não faz dela um estandarte, porque como eu acredita que um homem não se define por quem dorme na sua cama, mas integrou-a, sem traumas maiores, na sua vida. Como a personagem de Matthew Rhys no seriado, ele fala dos seus amores e desamores com a mãe, numa conversa banal, mas sempre cúmplice. Se for preciso enquanto partilham um cigarro ou bebem um copo de vinho na cozinha. Fico feliz por ele. De verdade. Mas também assustado. Como estamos cada vez mais envolvidos, achei que tinha o dever de lhe dizer que para já ― e não sei quando esse dia chegará, ou mesmo se chegará alguma vez… ― eu não sentia necessidade de falar de mim e do que estou a viver à minha família, à maioria dos meus amigos. Ele aceitou, mas eu fiquei com reservas.

No mesmo episódio, o irmão gay está na cama com o seu namorado, interpretado por Jason Lewis (para quem não sabe, o garanhão louro de Samantha em O Sexo e a Cidade). Toca o telemóvel (celular). O namorado atende e diz que está na casa de um amigo. Um amigo. Na cara do irmão gay é claro o desapontamento por ter ficado reduzido à categoria de “amigo”. O namorado percebe e convida-o para tomar o pequeno-almoço fora. O irmão gay não resiste a fazer uma piada: “Que bom! Vamos poder ser vistos juntos no mundo exterior”!

E é ai que eu pergunto: por muita boa vontade que haja de parte a parte, como se administra, sem dar espaço à recriminação mútua, uma relação em que um receia a sobrexposição e a invasão da sua intimidade e o outro teme tornar-se um homem-sombra condenado a amar às escondidas? Desconheço a resposta, a fórmula, se é que existe uma. Mas estou disposto a tentar.