27.8.07

Compasso de espera


I’d sacrifice anything come what might
For the sake of having you near

In spite of a warning voice that comes in the night

And repeats, repeats in my ear

Don’t you know you fool, you never can win
Use your mentality, wake up to reality
But each time I do, just the thought of you

Makes me stop before I begin
cause I’ve got you under my skin
(I’ve Got you Under My Skin, por Bono & Sinatra, escutar aqui)


Amanhece o dia.

Claro. Cristalino.

O sol arrepia.

A água fria espevita.

A pele nua salgada.

Pés descalços na areia.

Flutuar num tempo suspenso.

A vertigem do calor.

O cantar lancinante das cigarras na falésia.

Chega a tarde.

O cheiro a tomate e a manjericão.

A sombra fresca.

A grande árvore projectada como uma sombra chinesa.

A brisa suave que afaga.

As flores incandescentes da buganvília trespassadas pela luz.

A preguiça que se aninha.

A grama cortada de fresco.

Baloiçar numa rede.

O piar das rolas num voo rasante.

Os figos inchados que se deixam colher.

Ver o dia esvair-se num campo de sobreiros e oliveiras.

Duas aldeias entre a serra e o mar.

Cai a noite.

Olhar as estrelas dependuradas.

O céu que estremece num clarão.

Chuva de Verão.

A terra solta o perfume.

Um naufrago à deriva numa cama.

Os sentidos à tona.

À flor da pele.

Na escuridão acende-se o desejo.

Tactear o lençol, às cegas, à tua procura.

Sentir-te perto, embora longe.

Tornar tua a mão que em mim desliza.

Encolher-me para preencher o teu vazio.

Iludir o desejo.

Embalar o corpo cansado.

A mente vagueia.

Desperta.

De vigília.

À espreita.

À espera de ti.

Dedicado a G.

17.8.07

Os estetas


Oh, why you look so sad? Tears are in your eyes
Come on and come to me now.
Don't be ashamed to cry, let me see you through
Cause I've seen the dark side too.
When the night falls on you, you don't know what to do,
Nothing you confess could make me love you less
I'll stand by you, I'll stand by you, won't let nobody hurt you,
I'll stand by you.
So, if you're mad get mad, don't hold it all inside,
Come on and talk to me now.
And hey, what you got to hide? I get angry too
But I'm a lot like you.
When you're standing at the crossroads, don't know which path to choose,
Let me come along, cause even if your wrong
I'll stand by you, I'll stand by you, won't let nobody hurt you,
I'll stand by you.
Take me into your darkest hour, and I'll never desert you.
I'll stand by you.
And when, when the night falls on you baby, you're feeling all alone,
You won't be on your own, I'll stand by you. I'll stand by you
I'll stand by you, won't let nobody hurt you. I'll stand by you
Take me in into your darkest hour and I'll never desert you

I'll stand by you.

(I’ll Stand by You, por The Pretenders, escutar aqui)


Não me apeteceu fazer pendant. A música não tem a ver com post, nem o post combina com a imagem. Estão aqui porque me apeteceu. Tout court. O que não quer dizer que não haja um motivo para essas escolhas terem sido feitas e um nexo de causalidade. A música, elegi-a pela mensagem. Uma mensagem que quis passar. A uma pessoa em particular. A imagem porque é de um filme que gosto. Melhor. É de um filme, O Talentoso Mr. Ripley, que me lembra o Verão, Itália e uma certa forma dandy de estar na vida a que não sou indiferente.

Quanto ao tema deste post, quem leu o anterior vai achar, e não os condeno, que ando a ver televisão a mais. Pois é, o noctívago que há em mim não me deixa ir para a cama cedo como qualquer outro comum mortal. Resultado, entre um ou outro dever, arranjo sempre maneira de espreitar um seriado. Acompanho vários ao mesmo tempo. E nem sempre sigo o fio à meada. É o que acontece com o já citado Brothers & Sisters. Noite dentro, apanho mais um episódio desgarrado da primeira temporada. Não é a continuação do último que vi, mas o bom destes enredos é que não precisamos de muito para entrar na estória. Desta vez, a matriarca do clã Walker (Sally Fields) está com o filho gay na cozinha (Matthew Rhys). Depois de ter ficado viúva e de ter descoberto que foi traída pelo marido durante uma boa parte do casamento, ela está a ressuscitar um talento antigo para a pintura e para a escrita criativa. Pede a opinião do filho sobre um trecho que escreveu e fá-lo porque, segundo ela mesmo confessa, “ele tem maior sensibilidade do que os irmãos” para poder avaliar o seu talento… A réplica do filho ― “ O que tu queres dizer é que sou gay…" ― não surpreende, pois era a resposta óbvia naquele contexto, mas deixou-me, uma vez mais, em estado meditativo: desde quando é que se tornou ponto assente ou legítimo esperar que os gays possuam uma maior sensibilidade artística e um gosto mais apurado?

Admito, se é que ainda não ficou claro para quem habitualmente me lê, que sou, por norma e por feitio, avesso a generalizações. Quero dizer que não me conformo facilmente com essa mania de arrumar tudo e todos no mesmo saco. Mesmo conhecendo muito poucos, estou certo que haverá por ai muito gay sem o menor talento, ou interesse, para escolher e combinar roupa. Mas isso leva-me também a um outro preconceito, que notei existir mesmo na comunidade gay, e que passa por associar essa maior “apetência” ao lado feminino, como se um homem com maior sentido estético fosse, necessariamente, menos viril. Depois, insisto: desde quando é que se tornou, também, ponto assente que gostar de roupa ou de flores, por exemplo, é sobretudo coisa de mulher?

Meço o caso por mim. Gosto de roupa, já gastei mais do que deveria numa ou noutra peça, sou capaz de folhear uma revista de moda, até sei quem é Tom Ford, mas se me perguntarem, assim de rajada, quem é o Dolce e quem é o Gabbana, o mais certo é eu hesitar e falhar a resposta. Da mesma maneira, e sobretudo graças a uma profissão que me possibilitou o acesso a determinados lugares, acabei por desenvolver um certo sentido estético e gosto pelo design de interiores. Talvez por isso, muitos familiares e amigos fiam-se na minha opinião a esse respeito e não se admiram mais por eu sentir necessidade de mudar ciclicamente uma ou outra coisa na decoração da minha casa. O curioso é que eu me retraio muito mais de fazer alarde disso do que eles… Vai ver porque eu sempre acho que se um dia vierem a saber que sou gay vão logo associar uma coisa à outra. Ou seja, o preconceito parte de mim e isso, claro está, irrita-me.

Por outro lado, há ideias que estão de tal forma enraizadas que não adianta de muito sequer colocá-las em causa… Veja-se o caso das mulheres e dos gays. Não há filme ou seriado que não bata na mesma tecla, ou seja, a de que as mulheres não dispensam os gays quando acabam um relacionamento, e lhes dá muito jeito ter por perto um homem que as saiba ouvir e mimar sem segundas intenções; e quando vão comprar roupa, pois parece que os gays batem aos pontos os heteros, homens e mulheres, nessa hora: olham de perto sem sentir a tentação dos primeiros e opinam com a sinceridade que falta muitas vezes às segundas... A minha primeira reacção é franzir o sobrolho a tal redundância grosseira, mas, aqui entre nós, pensando bem, ambas as situações não são assim tão improváveis como isso… E quem nunca se viu numa "armadilha" idêntica que atire a primeira pedra!

Para rematar, continuo sem saber se os gays, de uma forma geral, possuem ou não um maior sentido estético, agora que são, cada vez mais, um alvo a seduzir disso não tenho dúvida. Depois de descobrirem que os casais gays, os chamados DINK (Double Income, No Kids) têm bom poder de compra, as grandes marcas estão apostadas em apelar descaradamente à sua veia hedonista. A mais recente é a campanha da Levi’s 501 (ver aqui), que se deu ao trabalho, e à despesa, de criar para o mercado norte-americano um filme publicitário com duas versões: uma para os meninos que gostam de meninas e outra para os meninos que gostam de meninos. Então e as meninas que gostam de meninas? Bom, pode ser que se lembrem delas quando escolherem um outro modelo de calças... Digo eu... ),

9.8.07

Eu, ele, a mãe dele, a minha mãe...


I pray you learn to trust
Have faith in both of us
And keep room in your hearts for two

(Precious, por Depeche Mode, escutar aqui)


Num destes dias, ou melhor, numa destas noites, dei por mim a assistir no FOX a um episódio desgarrado da primeira temporada de Brothers & Sisters, um seriado (mais um) da ABC. A dada altura, na festa do 60º aniversário da matriarca, interpretada por Sally Fields ― com muita confusão, tensão familiar e gags à mistura, como convém ao enredo ―, as personagens de Calista Flockhart (para quem não se lembra, a eterna Ally McBeall) e de Rob Lowe (para quem não se lembra, antigo “namoradinho” da América até ter sido descoberto num vídeo caseiro a brincar de threesome com uma amiga e um amigo) estão a beber, às escondidas, no roupeiro dela. Entre sapatos e vestidos, ela insiste para o senador republicano contar ao irmão gay dela ― interpretado por Matthew Rhys (para quem não sabe, um actor do País de Gales que se tornou conhecido depois de contracenar com Kathleen Turner, no West End londrino, na peça The Graduate) ― que também tem um irmão gay... Isto porque o rapaz, que se assume sem problemas perante a família e o mundo, não vê com bons olhos a irmã estar a envolver-se com o membro de um partido conhecido pelas suas posições conservadoras em relação aos homossexuais.

Fiquei a pensar no assunto...

Quando ponderei envolver-me pela primeira vez com um homem, na interminável listas de prós e contras que formulei na minha cabeça, uma das coisas a favor era, precisamente, o facto de ele não se assumir como gay e de fazer praticamente vida de casado com uma namorada dos tempos da universidade… Achei que assim não corria dois riscos fundamentais: o de ele querer algo mais sério (e ficar no meu pé caso eu quisesse bater em retirada); e o de não ser do seu interesse, tal como do meu, expor-se. Curioso que, no final, quando os contras venceram os prós e eu decidi não avançar, já nem sequer tinha tanta certeza se aquilo que me parecia ter sido uma vantagem no início ainda o era… Sai com a nítida impressão de aquela bissexualidade mal digerida tinha contribuído, e muito, para o tornar uma pessoa conflituosa e mal resolvida.

Adiante.

O segundo homem por quem me interessei, e quase me apaixonei, sabia há muito ser gay. Não tinha (nem tem, acho eu) a menor dúvida a esse respeito. Chegou a dizer-me que, depois de ter beijado um homem pela primeira vez, nunca mais se conseguiu envolver com uma mulher. Mas vivia (ainda vive, acho eu) no armário. Por motivos familiares, por razões profissionais. Há anos que é assim. Achei normal. Mais. Identifiquei-me com a situação. Afinal, também eu me imaginava a viver do mesmo modo. Em mundos paralelos. Acontece que, no pouco tempo que “convivemos”, me apercebi que nem tudo estava tão bem resolvido na sua cabeça como eu julgava à partida. Depois de anos a viver na sombra, na noite, de vários casos abortados, esse homem, descobri, tornou-se desconfiado, quase desenvolveu uma fobia a possíveis doenças e contágios e refugiou-se na carreira para ter uma desculpa. Uma desculpa para não se envolver.

Adiante.

Entra um terceiro homem na minha vida. Permito-me explorar com ele novas emoções, arriscar diferentes sensações, transpor certos limites. Desde o princípio, torna-se claro para os dois que é muito mais do que sexo o que está em jogo. Mas não é disso que importa falar. Ele vive a sua sexualidade de forma aberta. Não faz dela um estandarte, porque como eu acredita que um homem não se define por quem dorme na sua cama, mas integrou-a, sem traumas maiores, na sua vida. Como a personagem de Matthew Rhys no seriado, ele fala dos seus amores e desamores com a mãe, numa conversa banal, mas sempre cúmplice. Se for preciso enquanto partilham um cigarro ou bebem um copo de vinho na cozinha. Fico feliz por ele. De verdade. Mas também assustado. Como estamos cada vez mais envolvidos, achei que tinha o dever de lhe dizer que para já ― e não sei quando esse dia chegará, ou mesmo se chegará alguma vez… ― eu não sentia necessidade de falar de mim e do que estou a viver à minha família, à maioria dos meus amigos. Ele aceitou, mas eu fiquei com reservas.

No mesmo episódio, o irmão gay está na cama com o seu namorado, interpretado por Jason Lewis (para quem não sabe, o garanhão louro de Samantha em O Sexo e a Cidade). Toca o telemóvel (celular). O namorado atende e diz que está na casa de um amigo. Um amigo. Na cara do irmão gay é claro o desapontamento por ter ficado reduzido à categoria de “amigo”. O namorado percebe e convida-o para tomar o pequeno-almoço fora. O irmão gay não resiste a fazer uma piada: “Que bom! Vamos poder ser vistos juntos no mundo exterior”!

E é ai que eu pergunto: por muita boa vontade que haja de parte a parte, como se administra, sem dar espaço à recriminação mútua, uma relação em que um receia a sobrexposição e a invasão da sua intimidade e o outro teme tornar-se um homem-sombra condenado a amar às escondidas? Desconheço a resposta, a fórmula, se é que existe uma. Mas estou disposto a tentar.