27.5.07

O trapézio



A abrir
A música. Sempre ela. Inspirei-me em O Rapaz do Trapézio Voador, um álbum dos Rádio Macau, de 1989, para escrever este falso conto de embalar. Porque também eu já quis ser como o rapaz do trapézio voador.


Era uma vez um miúdo que não gostava de circo ― quando todas as outras crianças riam com os palhaços, ele, apavorado, chorava.
O miúdo não gostava de circo, mas queria ser como o rapaz do trapézio voador.
O miúdo, agora homem, tornou-se o rapaz da porta ao lado e não o rapaz do trapézio voador.
O rapaz da porta ao lado passou a invejar o rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador era tudo aquilo que ele, o rapaz da porta ao lado, queria ser mas não era.
O rapaz da porta ao lado invejava a liberdade e a audácia do rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador arriscava a vida todas as noites, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, se limitava a viver sem riscos.
O rapaz da porta ao lado invejava o rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador vivia na luz, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, se limitava a ficar quieto na sombra.
O rapaz da porta ao lado invejava o rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador conservava as suas asas e a ilusão intacta de tocar no céu, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, tinha trocado as suas asas pela ilusão de ser apenas um homem entre os homens.
Mas, um dia, o rapaz da porta ao lado descobriu que também podia ser o rapaz do trapézio voador.
Como um ilusionista que, à força de tanto repetir o truque, se convence da ilusão, também o rapaz da porta ao lado acreditou que podia ser o rapaz do trapézio voador.
Todas as noites, o rapaz da porta ao lado pendurou-se no trapézio, a baloiçar de um lado para o outro, à espera de alguém que agarrasse a sua mão estendida.
Todas as noites, o rapaz da porta ao lado lançou-se do trapézio, num voo sem rede, à espera de ter uma mão estendida a que se agarrar.
Até que se cansou de esperar.
O rapaz da porta ao lado cansou-se de ser o rapaz do trapézio voador e quis voltar a ser apenas o rapaz da porta ao lado.
O rapaz da porta ao lado deixou de invejar o rapaz do trapézio voador porque descobriu que o rapaz do trapézio voador fazia da ilusão a sua vida, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, fazia da vida, sempre que queria, uma ilusão.

Moral da estória: o rapaz do trapézio voador pode parecer infinitamente mais interessante do que o rapaz da porta ao lado, mas não é, necessariamente, melhor ou mais feliz.

ou

De nada adianta fingirmos ser quem não somos. A ilusão pode durar um tempo, mas não é eterna.

9 comentários:

RIC disse...

Olá Oz,
Um tema candente - querer-se ser aquilo que não se é nem se pode ser. Fazemos ao longo da vida várias incursões aos limites do que bem poderá aer a predestinação, a ver se lhe conseguimos trocar as voltas, mas de cada vez que o fazemos ficamos mais cientes de que não há que lutar contra moinhos de vento...
Não sou fatalista, mas tenho para mim que entramos nesta dimensão com um «plano de voo» que nos cabe preencher. E, por vezes, há mesmo coincidências...

Um belo final de domingo para ti!

(Ah! Aprecio muito a sobriedade da escrita! Nada a mais, nada a menos!
Parabéns! Se valerem de alguma coisa, vindos de mim...) :-)

Manuel Braga Serrano disse...

Caro Oz, nesta estória estão cristalizados muitos que conheço dos sitios por onde costumo andar. A ilusão é um modo de vida que muitos escolhem e que me faz muita comichão nos neurónios, pois deve ser uma verdadeira estafa.
Abraço
Manuel

Pralaya disse...

Na realidade tomos já invejámos o rapaz do trapézio voador, assim como o rapaz da porta ao lado..

Moura ao Luar disse...

Ha pessoas que passama vida a olhar para o lado e a desejar o que os outros têm, porque aparenta ser melhor do que a sua própria vida, e assim vão-se esquecendo de lutar pela sua felicidade e pelas suas reais convicções... um dia percebem que a vida passou, e que a vida do lado tb tinha as suas imperfeições as suas tristezas. Um beijo meu amigo, sê quem és, é aí que está a tua felicidade

Anónimo disse...

Metafórico, sem dúvida! Aprecio esta tua maneira de expor as coisas, principalmente quando elas nos dizem tanto e acredita que me fez todo o sentido estatua forma de expor o problema... Ilusão é uma forma de vida, sim! Infelizmente, há quem a escolha, mas acredita que quando se voa alto, facilmente se cai bem no fundo... Por isso, a minha realidade é sempre aplaudida... Força e um abração pra ti!

BlueBob disse...

O rapaz da porta ao lado aqui, agradece pela menção de minha história. E pelas acertadas conclusões ou moral da história. É isso ai, amigo Oz!

Boa semana


Bjs

Anónimo disse...

...que bom é sonhar, ou invejar, que seja... acho bem mais nocivo se conformar com tudo o que decepcionando já não causa mais dor.

Abraços, do Menino Giro!!!

Râzi disse...

Meu padeiro fofo, que texto lindo!

Caramba... vc curte... é claro que curte! Eu ia perguntar se curte ler! Se curte, leia "Salto Mortal" de Marion Zimmer Bradley. É uma história sobre trapézio, circo, e dois rapazes descobrindo o amor. É um livro de temática gay.

Grande beijo!
^^

Anónimo disse...

Time's up! Já vai pro quarto dia sem postar, pô... Saudade! :-)