
Who do you need,
Who do you love
When you come undone
(Come undone, Duran Duran)
(Ler Parte I)
Uma súbita ameaça de erecção fê-lo voltar a si. Não podia fraquejar. A sua intenção era clara. Sempre fora. Para ele, pelo menos. Aproximara-se do outro com o firme propósito de o seduzir e descartar a seguir. Com a idade, tinha adquirido um talento especial para eleger as suas presas. Sabia detectar, à légua, os seus pontos fracos e era por aí que atacava. Não via nada de particularmente condenável no seu comportamento predatório. Pelo contrário, até sentia um certo orgulho em ser prático e objectivo. Não queria amor nem paixões arrebatadoras na sua vida. Tinha a sua profissão, que lhe consumia quase todas as forças, a sua família, o porto seguro a que voltava de vez em quando, e um grupo de amigos cada vez menor, mas que ainda assim não faltava ao seu chamado quando precisava deles. No resto, chegara à conclusão, muitos anos antes, de que misturar sexo com amor era pura perda de tempo e de energia.
Também não queria sexo só pelo sexo. Gostava do jogo do gato e do rato. Gostava de brincar com a sua presa antes da estocada final e dar-lhe, se ela tivesse sangue-frio para isso, a oportunidade de fugir. Perdia rapidamente o interesse no jogo se o seu parceiro demonstrava demasiada previsibilidade ― a dificuldade aguçava-lhe o instinto e fazia com que a capitulação final soubesse melhor ―, mas deixava igualmente de achar graça se, por algum acaso, o jogo caia num impasse e ameaçava prolongar-se indefinidamente. Ai, batia em retirada e ia à procura de nova vítima. A sua estratégia de caçador consistia em chegar-se a ela, depois de a eleger como o alvo mais vulnerável da manada, de mansinho. Cheio de cuidados para não a espantar. Simulava uma distância que desse à sua presa a sensação de estar a salvo, mas, à medida que ganhava à sua confiança, reduzia cada vez mais o espaço entre ambos. Quando a presa se apercebia, já estava suficientemente enredada na sua teia. Na maior parte dos casos, a cumplicidade entre os dois era já tão grande, que a presa nem se debatia ou oferecia resistência. Aliás, nada lhe dava maior gozo do que ser a presa a implorar-lhe para ser devorada.
Sorrateiro, deslizou até à beira da cama e pôs-se de pé. No lugar agora vago, o seu corpo continuava marcado no lençol como uma impressão digital. A sua primeira reacção foi a de passar a mão para o alisar ― como teria feito qualquer caçador furtivo que não quer deixar marcas da sua passagem ―, mas o receio de acordar o outro demoveu-o. Contrariado, começou à procura da roupa espalhada pelo chão. Agradou-lhe o contacto dos pés descalços com o soalho de madeira. Uma a uma, recolheu todas as peças, mas faltava-lhe um ténis. Sem fazer movimentos bruscos, abaixou-se e espreitou para debaixo da cama. Para seu alívio, estava ali.
Pé ante pé, aliviou o seu peso, o mais que pôde, para não fazer o chão ranger, contornou a cama e começou a dirigir-se à porta. Para verificar se o outro não dera por nada, espreitou uma última vez. Estava tudo na mesma, mas a cama pareceu-lhe muito maior. De repente, deixou de ver o outro para se ver a si reflectido num espelho que até então lhe escapara: um corpo nu, de pé, com roupas amontoadas nas mãos. Um fugitivo. Experimentou uma sensação estranha, de absoluto vazio, igual a que deve sentir a vítima de um vampiro depois deste lhe sugar o último sopro de vida. Nunca fora dado a sentimentalismos ― e se foi, já nem se lembrava do dia em que o deixara de ser. Semelhante constatação acertou-lhe em cheio, como uma pancada dada à traição.
Atordoado, saiu do quarto e fechou a porta atrás de si. Muito devagar. Deixou-se ficar por uns instantes amparado à ombreira. Queria começar a vestir-se e sair para a rua, mas algo retardava os seus gestos. Sem querer, começaram a vir-lhe à cabeça imagens em catadupas. Como num filme, pôde rever algumas conversas; o pudor do outro em se despedir dele pela primeira vez com um beijo; a forma divertida, e irónica, como reagia às suas alfinetadas; o jeito pueril como corou quando ele lhe segredou ao ouvido que não via a hora de o foder; o seu olhar, ao mesmo tempo assustado e ardente, quando se recostou na cama e, sem palavras, lhe deu sinal para avançar… Era como se estivesse a acontecer tudo outra vez diante dos seus olhos.
Quando, em que momento, sem ele que se tivesse dado conta, tudo aquilo havia deixado de ser um jogo, um exercício de sedução ― para si, pois para o outro, ele sempre o soubera, nunca o fora ― para passar a ser uma armadilha? O feitiço virou-se contra o feiticeiro: empenhou-se em acreditar, e consegui-o por anos a fios, de que o sexo era menos prejudicial à sua paz de espírito do que o amor. A fragilidade do seu plano, no fundo, sempre estivera exposta; ele é que não quis enxergar. Quem procura sexo fortuito não se dá ao trabalho de estabelecer laços de cumplicidade, ainda que provisórios e sob a desculpa de tornar tudo mais excitante, mas deixou-se cegar pela vaidade. A vaidade de quem se habituou a manipular as emoções alheias, criando nos outros a ilusão de que se estava também a dar, quando, na verdade, não estava. Iludiu-se de que poderia viver assim para sempre. Incólume. Mas ninguém brinca com o fogo impunemente.
Num gesto mais emotivo do que racional, girou a maçaneta da porta e entrou de novo no quarto. O outro permanecia na posição em que o havia deixado. Aninhado sobre si mesmo, quem sabe a precaver-se, ainda que instintivamente, do abandono que esteve iminente. Foi invadido por uma sensação que, até há pouco, teria confundido com mero desejo. Todavia, não foi capaz, naquele momento, de reconhecer o arroubo de ternura, mas cedeu quando uma força o impeliu para a cama. Largou a roupa no chão. O seu lugar mantinha-se vago e quente. Tudo voltou a fazer sentido. Como se ele nunca tivesse saído. Sentiu-se tentado a aconchegar-se mais, a abraçá-lo, mas resistiu desta vez. Foi o outro, ao pressentir a sua presença, que recuou e se encaixou nele. Continuava a dormir. Toda a pele do seu corpo reagiu àquela comunhão, mas mantinha-se hirto. Mas foi então que o vazio, que ainda há pouco o havia deixado tão angustiado, desapareceu para dar lugar a uma felicidade como há muito não sentia. Cedeu, por fim. E assim, pela primeira vez em muitos anos, permitiu-se amanhecer abraçado a alguém.
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Dedicado a todos aqueles que andam por ai a enganar-se ― convencidos de que os iludidos são os outros, os que têm a generosidade de se mostrarem com são e não têm medo de se entregarem ―, até provarem do seu próprio veneno. E com isto, espero também ter encerrado, de vez, mais um capítulo na minha vida.