3.7.07

A despedida-Parte II


II
A LEMBRANÇA

(Trilha sonora: Jesus to a Child, por George Michael, escutar aqui)


Encontro-me sozinho no teu apartamento, que foi a nossa casa por pouco mais de um ano de vida em comum. A tua família concedeu-me o especial favor de me deixar ficar aqui até eu arranjar um outro lugar para morar. Magnânimos como sempre, deixam-me até levar, e disseram-mo com estas exactas palavras, “alguns objectos pessoais teus, desde que, claro, nenhum deles constitua uma alienação do teu património”! Quando ouvi isto, dito logo após o teu funeral, a que tive de assistir na qualidade de “amigo” para salvaguardar as aparências ― como se todos ali não estivessem cansados de saber que éramos muito mais do que amigos, éramos amantes! ―, estive a ponto de perder as estribeiras, mas contive-me. Seja como for, nada disso importa agora que te foste. Olho à minha volta e ainda te vejo sentado na mesa da cozinha, a roer uma maçã verde, enquanto eu cozinho o jantar e tu me contas como foi o teu dia; consigo também, sem esforço algum, sentir o perfume da Aqua di Parma, que ficava a pairar no ar depois de fazeres a barba logo pela manhã. A tua gargalhada sonora continua a encher a casa… parece até que te estou a ouvir rir, pela enésima vez, com as tropelias dos Monty Phyton… Por falar nisso, onde é que andarão esses DVD’s? Não me posso esquecer de os levar, foram um presente meu. Há também a camisola de gola alta em caxemira, que te dei no último Natal… Como eu gostava de te ver com ela, mas tu resistias sempre a vesti-la… Achavas que te dava um ar demasiado emproado, hehehehehehe. Pensei também em levar os vários porta-retratos, que espalhámos pela casa, com fotografias nossas. Imagino que seja a última coisa que eles desejam encontrar aqui quando tomarem posse do imóvel. Gostaria ainda de poder levar comigo outras coisas, pois cada uma dela é um pedaço de ti e da nossa história juntos… Mas, desde que te foste, naquela noite maldita em que estive quase para me meter contigo no carro ― e como me mortifico até hoje por não o ter feito! ―, perdi o ânimo para lutar contra o mundo. Quero chorar, mas já não consigo. Esgotei as minhas lágrimas. A vida dá, a vida tira. Demorei muito a conformar-me, mas, vejo hoje que não são estas coisas que me vão ajudar a manter a tua presença viva. Quando fechar de vez aquela porta, levo comigo algo que jamais alguém me poderá tirar, que é a tua lembrança. E a tua lembrança é como um livro. Um livro que eu pretendo ler e reler muito devagar.

8 comentários:

RIC disse...

Ou demasiado cerebral - e consegue um pensamento tão ordenado, escorreito, linear, em nada afectado por uma perda que deveria ter consequências devastadoras -, ou não houve amor. Dois homens que um dia se terão conhecido, gostado um do outro, decidido viver juntos e partilhado os quotidianos. Mas amado? A narrativa afasta essa hipótese.
Talvez para quem tenha vivido este tipo de morte ao vivo este texto se afigure pouco verosímil. Ou então, não houve amor...
Abraço! :-)

Will disse...

Eu acredito que houve amor... daqueles bem verdadeiros =)

Anónimo disse...

Achei profundamente amoroso, sim. Nem todo mundo reage à perda de um amor de maneira tresloucada. E ainda se me parece que algum tempo se passou, portanto uma calma - ou melhor, torpor - que vem após as lágrimas.

Pralaya disse...

Muito bem escrito, fantástica maneira de personificar uma despedida.

Unknown disse...

Amigoooooooooo! Blz? Nossa, adorei teu texto! Muito tocante!
Beijos!

RIC disse...

Para que não haja qualquer mal-entendido quanto aos meus dois últimos comentários, queria deixar aqui bem claro que as minhas palavras reflectem apenas o efeito do «eu» de ambos os textos sobre mim e as reacções por ele provocadas.
Não faço qualquer juízo quanto a pessoa do Oz e, enquanto leitor, não me interessa se são autobiográficos ou não. Interessam-me tão-só enquanto textos literários verosímeis.
Nada disse quanto à qualidade da escrita, e fiz mal: gosto muito da tua forma de escrever, Oz, mas isto estou em crer que já te havia dito.
Abraço!

Oz disse...

Meu caro Ric:
Achei curioso teres voltado aqui sem sequer termos falado sobre o teu primeiro comentário. A unanimidade é perigosa e estou sempre aberto a críticas inteligentes. De toda a forma, sempre foste muito generoso em deixar-me saber que aprecias o que escrevo.
E já agora, não, nenhum destes textos, nem os próximos três que se seguirão nesta série, são autobiográficos. Não que importe, mas só para que conste caso não tenha ficado claro.
Abraço.

Anónimo disse...

Caro Oz
mais uma vez, não encontro neste texto, do qual gosto muito, nenhum paralelismo comigo, felizmente, e sei que o mesmo se passa contigo.
Uma ficção sobre este tema é sempre dificil, pois as reações terão que ser vividas e nem sempre conseguem reflectir os sentimentos havidos, pois é tão diferente imaginar e viver esse momento. Acredito que terá que ter havido amor, pois amar é compartilhar e o texto evidencia isso muito bem.
A música. é só o meu tema musical preferido de G. Michael e adapta-se perfeitamente ao texto.
Abraço.