Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Dentro da noite veloz
(Vambora, por Adriana Calcanhotto, escutar aqui)
Seis meses de blogue. Quarenta e oito posts em que me predispus ― não sem antes, admito, avaliar até onde queria e deveria expor-me ― a partilhar com vocês que passam aqui ― esporádica ou regularmente, com mais ou menos interacção ― as várias fases por que passei ao longo deste período. Foi um tempo de reflexão, em que me escudei, assumo, no interior da minha concha anónima ― o casulo, se preferirem, uma imagem que já usei antes metaforicamente ―, mas em que nunca me fechei ao mundo e aos que me rodeiam. A minha vida não parou nem ficou suspensa; apenas me permiti repensar e reavaliar algumas prioridades.
Sem drama. Sem crise. Sem culpa.
Por tudo isto, este seria sempre, necessariamente, um momento de balanço para mim. Quis não o acaso, mas alguém que fez por conquistar o seu lugar, que eu recebesse como presente um pequeno livro encadernado a vermelho, onde se pode ler a dourado: Metamorfose. Há gestos que valem por mil palavras ― e este, por certo, foi um deles. Não se trata da obra de Kafka, há muito guardada na minha estante entre os livros que me fizeram companhia ao longo de tantas horas, mas de um exemplar único, com ilustrações escolhidas a dedo e trechos dos vários posts que assinei como Oz desde o primeiro dia. Não há como ficar indiferente a tal manifestação de carinho e interesse.
Não foi a primeira vez que me vi confrontado com a minha escrita, mas agora ― e não tinha como ser de outra forma ― teve um peso diferente. É um percurso coerente, o que não quer dizer que me continue a rever em tudo aquilo que pensei e que escrevi. Aliás, a bem da verdade, se tenho alguma qualidade, ela é certamente a de não ter pruridos em mudar de opinião ou de rever as minhas posições.
Este foi e é um blogue assumidamente escrito e pensado na primeira pessoa, mas sempre tive presente, como já disse antes, até onde queria ir na exposição da minha intimidade. Não vou recuar nesse propósito. Tenho, contudo, claro para mim que, em determinado momento, foi muito importante ouvir (ler) o que os outros tinham a dizer, por isso talvez seja chegada a hora, sem que possam ver nisso a mínima pretensão de servir de modelo ou de exemplo, de deixar o meu testemunho a quem, como eu, sente dificuldade em achar o seu rumo na estrada de tijolos amarelos.
Pela primeira vez estive com um homem. Mas não estive com um homem qualquer. Estive com alguém que, antes de ser meu amante, se tornou meu confidente e amigo. Foi uma escolha minha e dele. Não tem de ser assim, mas para nós fez sentido que assim fosse. É bem possível, admito-o, que não fossem algumas contingências externas à nossa vontade e até poderíamos ter estado juntos mais cedo, mas, seja como for, foi uma espera necessária e até certo ponto imposta por nós.
Não existem fórmulas mágicas. Não existem timings exactos. Não existem homens perfeitos. Se algum mérito há neste meu processo foi o de, precisamente, ter percebido a tempo ― e a que não será alheia também alguma maturidade que os meus trinta e alguns me trouxeram ― que, coincidências e percursos semelhantes à parte, cada caso é único. Logo, por mais válido que seja dar ouvido aos outros, no final cabe-nos sempre a nós assumir as nossas escolhas e traçar os nossos caminhos. Como em tudo o resto na vida, não queiram viver a vossa sexualidade e afectividade à imagem de quem quer que seja.
Que fique entendido: não estou a condenar ninguém. Pelo contrário. Estou é a dizer que há vários caminhos possíveis e mais do que uma oportunidade e todos eles são válidos desde que, a curto, médio ou longo prazo, sirvam para nos tornarmos pessoas mais completas. Para muitos, a minha experiência pecará por tardia e por misturar desejo com afecto, mas, à luz do que sou e do que vivi, ela faz todo o sentido. Talvez por isso, eu não sinta que o meu maior “feito” tenha sido o primeiro beijo, ter ido mais ou menos longe na cama ou ter mais ou menos “pegada” na hora do encosta-na-parede. Isso são tudo coisas que se resolvem, acredite quem ainda não passou por elas, à medida que o desejo e o à-vontade com o vosso parceiro falarem mais alto. A minha maior conquista foi, eu acho, ter conseguido passar por tudo isto sem abdicar de algo que, não sendo fundamental à satisfação dos nossos desejos, torna tudo mais especial quando esta lá. Estou a falar de cumplicidade.
Quem me lê desde o início, sabe que depressa arrumei a questão do sentir desejo por homens, mas que tinha ― e ainda tenho, pois nem tudo se resolve de um dia para o outro ― vários preconceitos em relação à afectividade entre dois homens, que me levantava sérias reticências. Pois a vida ― e um homem, nunca é demais dizê-lo, que desde o primeiro momento nunca me escondeu que para ele a afectividade era tão ou mais importante do que o resto ― tratou de me demonstrar que não há tratado que resista à simplicidade das coisas como elas são.
Durante os últimos dias, tudo conspirou ― sobretudo o (mau) tempo ― para que eu e ele ficássemos “ilhados”. Vivemos numa espécie de bolha, o que poderá parecer, numa primeira leitura, uma provação excessiva para duas pessoas que ainda se estão a conhecer. O facto é que isso nos aproximou e me possibilitou, talvez mais a mim do que a ele (que nunca teve grandes dúvidas a esse respeito), desenvolver uma série de “rotinas” que eu não me via de todo a ter com um outro homem. Assim, mais do que apenas a tensão (química) sexual por nós vivida ― e que é fundamental, sejamos honestos ―, eu vou guardar na memória os momentos em que nos limitámos a dar as mãos, a pousar a cabeça no ombro ou no colo do outro, a dormir enroscados, a partilhar um copo de vinho ou uma cerveja enquanto se fazia o jantar ou em que nos embalámos ao som de músicas que já fazem parte da banda sonora das nossas vidas. E tudo isso era, repito, bem mais improvável para mim de acontecer do que toda a parte física envolvida.
Só mais uma coisa para concluir: façam o que fizerem, façam-no sempre até onde tiverem vontade e de acordo com o vosso ritmo. Não vos garanto ― nem é esse o meu papel ―, mas aposto que, tal como eu, no dia seguinte não vão ter qualquer ressaca moral ou arrependimento. A vida terá seguido o seu curso normal, tudo continuará no mesmo lugar e o vosso olhar não terá mudado. A forma como os outros vos passarão a enxergar até poderá mudar, mas até isso será tão-só, se vocês assim o entenderem, um pormenor e não uma sentença.
Fecho aqui um ciclo. Inicio outro. Uma nova fase em que, por respeito e bem-querer a alguém, vou repescar ao tal livro uma frase minha dita antes, mas que nunca fez tanto sentido como agora:
- Trocar as asas por um coração. Abandonar o pedestal seguro dos que tudo vêem e ouvem, mas nada sentem, pelas pernas doridas dos que não se cansam de errar o caminho na tentativa de acertar. SENTIR.